domingo, 18 de abril de 2010

[mini-conto] escatológico

ESCATOLÓGICO

O Dia do Juízo Final chegou para todos no mundo de forma igual, não importando a origem ou credo dos pecadores. O mesmo espetáculo esperava cada pobre alma que erguesse os olhos naquela manhã tantas vezes profetizada, tantas vezes adiada: um céu ondulante como o oceano num mundo de ponta a cabeça, ao invés de nuvens ou luz do sol ou azul , legiões infindáveis de anjos flutuando em posição de vigília ou de sentido por toda a abóboda celeste.
Lunetas e telescópios revelavam apenas pequenas variações na mesma tapeçaria, os mesmos padrões de figuras de gênero indefinido em togas brancas, postura nobre mas pia, não ameaçadora, mas até mesmo apática, cada um dos milhões de integrantes das hostes celestes de cabeça baixa, mãos sobre os peitos, como em meditação profunda, um exército preparando-se para a investida final, ou em oração contrita, conjunta pelos pobres humanos que os contemplavam arrebatados lá embaixo.

Imóveis , seguros no ar pelo movimento incessante mas sutil de suas asas majestosas, esse bater leve, até mesmo calmante em sua concentração absoluta, a imagem divina de uma tranquilidade altaneira que contradizia a própria ameaça silenciosa de sua presença maciça. Cada anjo batendo suas asas como nadador  boiando com a barriga apontado pro espaço: aguardando,aguardando,aguardando, enquanto a Humanidade sustinha sua respiração coletiva, ela mesma aguardando seu veredito final.
Aguardava um anúncio e uma ação que viriam passadas poucas horas daquele transe esplêndido, de fato: um troar que bilhões tomaram como o som das trombetas divinas...ainda que a impressão não persistisse por mais que meras frações de segundo. Após o susto inicial, o som lembrava mais o urro irritado de uma manada de elefantes... e então o ar escapando em sopro furioso de um balão.
E então se tornou um coro de suspiros aliviados pois, contemplem!: com as abas das togas levantadas, os anjos despejavam sobre a terra uma tempestade de bosta de passarinho.













[título apócrypho:
MEU IRMÃO MAIS VELHO VAI TE PEGAR, VIU!:A VINGANÇA DOS ANJINHOS BARROCOS(q.v.)]

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