sexta-feira, 15 de abril de 2011

[conto-curto] o sexo dos demônios

O SEXO DOS DEMÔNIOS
Muriel se recolhera para o canto mais calmo, o mais solitário, do jardim de inverno, na hora do chá, depois da aula de catecismo enocheano. As dores de cabeça estavam piores e ela queria estar a sós com seu pequeno tormento, com o pavor da eclosão iminente da puberdade.



Sentia falta da amiga Jezebel, no entanto. As duas vinham da classe trabalhadora, protegiam-se juntas do desprezo das colegas riquinhas no dia-a-dia tedioso da escola para moças. Jezebel estava trancada a dias em
seus aposentos, porém: "indisposta", informavam os professores. Muriel - e as colegas zombeteiras - sabia muito bem o que aquilo queria dizer, realmente.

Agora, ela. Todos deveriam pagar pelos pecados dos ancestrais, era o que pregava a Igreja Enochena. O fardo universal, aquela semente que se manifestava de forma dúplice em toda geração, para a graça de uns, para a perdição de muitos.

Muriel deveria estar orando, jejuando, pedindo conselhos aos tutores, mas podia apenas se lamentar ,por ela mesma, por Jezebel; por vergonha, pois temia falhar em suprimir ,  em controlar sua natureza... Envergonhada
diante da lembrança dos pais que labutavam tão duramente para que a filhinha única tivesse uma vida melhor do que a que tiveram, uma chance...Podia apenas flagelar-se na própria dor:

Ali, aí!arqueada, dobrada como que pronta a se quebrar , a cólica monstruosa - a queimação nas costas!,mordendo os lábios para não imundar o cálido jardim com seus gritos...

Algo se partia , se rompia...sentiu o vestidindo rasgando-se nas costas...ou seria sua própria pele?

E a dor passou, sumiu de uma vez, não deixou atrás de si nem mesmo lembrança:

Muriel sentindo-se leve como, sim, como uma pluma, como uma pena!leve e tonta, tola, e não se importando com a própria frivolidade, deslumbranda: não podia ver as enormes asas de anjo que haviam brotado, frescas, ainda úmidas,mas firmes. Senti-as, esse novos, potentes membros - ali! sua sombra majestosa na parede, esse novo, lindo pássaro no jardinzinho...

Não podia acreditar na própria sorte, no modo como fora favorecida na "loteria" do sangue, do destino. Estava louca para partilhar a boa nova com--

Ouviu uma risada leve a suas costas e o som de palmas.

Voltou-se, pronta a encarar as tolas colegas de internato e a lhes exibir,orgulhosa, os novos adereços, mas quem se aproximava, rindo e aplaudinho, saída de trás de um arbusto, era Jezebel.

Jezebel estava diferente, como Muriel estava diferente, só que...mais. Seus olhos eram amarelados, agora, com apenas um leve risco negro no centro. De sob sua saia, arastava uma cauda longa e fina, cuja ponta triangular agitava-se indolente de um lado para o outro - e, pequenos mas visíveis, surgiam entre seus cabelos negros desgrenhados um par de chifres.

Muriel estava confusa, uma pequena perturbação que começava a dissolver seu júbilo. Para sua vergonha, Jezebel, sempre calada, caminhou lenta a seu redor, examinando-a atentamente e soltando murmúrios de apreciação como se ela fosse uma leitoa em leilão.

Parou então a sua frente, sorriu aquele sorriso...diferente, piscou-lhe com um dos olhos amarelados e mostrou-lhe a língua: uma língua bipartida, rósea, fina  e longa que dançava sibilina a frente de seu rostinho.

E Muriel enrubesceu e começou a bater vigorosamente as asas - os pés erguendo-se a poucos  centímetros do chão - num sinal claríssimo de excitação.

Pois saibam, ó pecadores!Que a raça humana traz em si uma semente dúplice desde os tempos imemorais em que os homens e mulheres comungavam com anjos e demônios. E que essa semente pode se manifestar quer de uma forma, quer de outra.

E aquilo pelo qual os demônios se perdem, aquilo que mais desejam (e é um desejo proibido que só pode se consumar na carne dos seres humanos) , são os anjos. E vice-versa - amém!

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