sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

[conto-curto] Foi tudo um sonho

[escrito para a Semana Surreal , da comunorkútica  CONTOS FANTÁSTICOS, sob o pseudônimo "Big Nemo"]

Rodrigo acorda suado, assustado, coração batendo forte, o corpo tremendo todo . É o suor que esfria rápido sobre a pele, é também o gosto ruim que fica na boca, do sonho de quejá não se lembra.


Que raiva, que raiva...! No entanto... Sorte que ele tenha acordado, imagina. Na confusão, o sonho se re-arranja em sua cabeça, some, ainda bem, e o alívio toma o lugar do suplício.

Mas Rodrigo não vai voltar a dormir tão cedo – que raiva! -: sente a bexiga cheia, arre, há que levantar , caçar o velho penico debaixo da cama.

Pragueja baixinho enquanto afasta os lençóis molhados de suor (só de suor, ainda bem – e em tempo), já sente mais frio. Detesta dormir na cama do meio do beliche, mas nem sempre tem escolha.

Os olhos ainda não acostumados à escuridão do dormitório, Rodrigo tateia a escuridao com os pés até encontrar a escadinha de madeira, agarra-se, puxa-se com cuidado para fora do colchão.

Inevitável, bate a cabeça na cama de cima; engole um palavrão, o vizinho apenas continua resmungando em seu sono, preso em alguma discussão enfadonha consigo mesmo : os resmungos passando de anasalados a graves, como o assovio de um expirar seguido doronco de um inspirar, um ator seguindo com esmero as deixas de dois personagens opostos .

Desperto de vez com a pancada, Rodrigo desce com muito, muito cuidado. Logo abaixo, a escuridão menos sólida deixa entrever uma figura de costas, toda enrolada sobre si mesma, como uma só trouxa de roupas sujas. Irreconhecível, mal se vê um punhado de cabelos brotando desse bolo esbranquiçado, não se advinha a cor ou textura.

Já passado o beiral da cama, Rodrigo ouve a figura mudar de posiçao e hesita, curioso, pensa em voltar para descobrir quem era a bendita criatura, afinal desiste. Apartir da terceira cama (duas gêmeas pré-adolescentes com as cabeças repousadas em lados opostos; de alguma forma, conseguem alternar perfeitamente seu ressonar, de modo que parece haver apenas uma única sonhadora ali), as coisas começam a se complicar , ele tem que prestar mais atenção ao que faz.

Apesar de todos os beliches empilhados no dormitório serem compostos de três camas (ao menos, até onde Rodrigo saiba), não são todos do mesmo modelo. O próximo, por exemplo, tem a escadinha mais à direita, obrigando o notívago a executar uma delicadissima acrobacia, agarrado ao beiral da cama acia, apoiado os dedos dos pés descalços , um tanto rudemente no colchão das meninas , depois escalando a lateral de madeira de seu beliche, que então se tornava a armação de metal – mais leve, mais rangente, mais difícil de se agarrar...- do seguinte.

No primeiro nível , um casal jovem. Ele, dormindo, parecia anuado, encurvado sobre si , as mãos enfiadas nos sovacos – ela, acordada, acesa, grávida: um saco de biscostos de polvilho e um laptop sobre a barriga proeminente, as luzes da tela piscando, refletidas nas lentes de seus óculos e nos olhos bem abertos, indo de um lado para o outro, fones nos ouvidos, praguejando de boca cheia no que parecia ser uma sessão intensa de jogo mata-mata online. E, a cada vez que a moça aperta com vigor o botão esquerdo do mouse, seu marido treme com força, como se picado por pernilongos em sonho.

No segundo nível, uma velha senhora: morta, pálida – infelizmente, Rodrigo já enxerga melhor nesse ponto – seca, num vestido antiquado e escuro, ainda que se veja pouco de sua frágil figura além das mãos sobre o peito e o resto muito seco, a cama repleta de flores – cujo cheiro dispara um acesso de espirros, Rodrigo quase despenca, sacolejando-se, a cara enfiada no braço a cada explosão, seja por discriçao, respeito, lá sabia ele, apenas abafado. A defunta tem a boca escancarada, como a de quem ronca alto.

No terceiro nível: um senhor de meia-idade, distinto , mesmo em seu sono, com um belo cão de raça a seus pés, o pelo alvo quase se confundindo com a roupa de cama branca limpa engoamda. Ao passar para o próximo beliche, com os olhos ainda úmidos e o nariz sujo, Rodrigo ouve um leve ganido, e ele vem do homem que dorme.

E ao passar do quinto beliche (um lençol erguido num cone, como uma tosca tenda de acampamento, com luzes e vultos indefinidos em seu interior; um urso de pelúcia solitário sobre um travesseiro, um protetor de olhos sobre o focinho, vestindo uma imitação de pijaminha com os dizeres gravados em cor de rosa: “NAO ME ACORDE ATÉ A PRIMAVERA”; um casal idoso transando como coelhos, gemendo como se estivessem em suas agonias finais...), Rodrigo já está de saco cheio. Literalmente, até: a bexiga pesa como um cofrinho, e ele tem vontade de se curvar e de se enrolar todo como um tatu. Os braços doem, os dedos das mãos e pés começam a ficar dormentes. Tremendo, trincando os dentes: tem que passar para a pilha de camas à esquerda, pois, no beliche abaixo, a escadinha está situada do lado oposto da pilha, o de fora, e Rodrigo não tem disposição para negociar os enormes degraus dessa falsa escada.

Faz com custo a passagem para o lado e quer chorar, tamanha a dor no baixo ventre. E só tem tempo de enxergar um par de enormes pés enfiados em meias de lã, antes de sentir uma chuva quente que bate em seu rosto.

Chuva nada. Mais acima, alguém assovia tranquilamente, enquanto Rodrigo é ensopado pelo jato sem muita força.

Filho da puta. Por que não pensei nisso antes?

A urina faz com que Rodrigo escorregue do beiral e caia sem se debater; aproveita a deixa para se aliviar com força, botando a culpa no medo.

A surpresa está no final da queda: não há um baque, há um puf! Rodrigo sente uma dor, quase náusea de má-digestao no peito, e os dentes quase pulam para fora da boca, mas nada é quebrado, não há ferimento. Um pouco mais de aturdimento, talvez, enquanto a energia de sua queda se dispersa, e ele sobe e desce, sobe e desce, em ondas de sua própria criação.

Isso, ele nunca imaginaria. O chao do dormitório é um só, vasto, ondulante, generoso colchão d'água. Rodrigo deixa-se ficar , aliviado, rindo-se espraiado, ondulando. Relaxando, enfim; olha ao redor, ainda sorrindo, vê que há outras figuras insones sobre superfície elástica, a maioria, crianças elétricas fugindo da toque-de-recolher da hora de dormir... Mas, ali, há uns dez metros: três moças em flutuantes & diáfanas camisolas riem-se desbragadas, saltitantes, atacando-se com travesseiros que vazam penas de ganso a cada golpe, num lenta e particular nevasca. Rodrigo vira-se, pronto a se erguer e pular de pé em pé em direção ao adorável trio...

E é então que os despertadores começam a soar por todo o dormitório.

Um comentário:

rst disse...

Que belo conto, Sr.! Vê se volta a nos presentear com seus escritos! E esse final, esse final!