Não tenho muita fé,
mas não sei se a gente precisa mesmo ter muita fé nas coisas.
Também, não sei lá muita coisa.
Disso eu sei, que eu
adorava a Virgínia, eu adorava aquela menina. Ao menos, desde aquela
tardezinha nos fundos da loja de seu Armando, em que ela fugiu
esbaforida quando lembrou da janta, o atraso, a mãe com o chinelo na
mão (seria mesmo?): me deixou lá com a cara em fogo, o coraçãozinho
meninote aos pulos.
Nunca me recuperei
daquilo, foi como uma revelação. A Virgínia, não sei, nunca vou
saber; nem mesmo se ela mudou de comportamento comigo, acho que não.
A Virgínia continuou sendo a Virgínia de sempre. Minha Virgínia.
Crescemos. Virgínia
tornou-se uma mulher de verdade, sem falta de respeito da minha parte.
Eu acho que continuei sendo um molequinho, o molequinho nos fundos da
loja do seu Armando.
Virgínia casou-se
com o Rodrigo. Eu, nem sei se fiquei infeliz. Digo: nem sei se fiquei
mais infeliz ainda, acho que nem dá. Eu continuei.
Rodrigo era muito
mau com Virgínia. Batia, maltratava, humilhava. nem tinha a desculpa
da bebida ou vida difícil, era ruim, e só.
Mas acho que ele era
louco por ela, no fim das contas. Quem sabe mesmo... mais louco do
que eu? Quem sabe.
Ninguém fazia nada,
nem podia, a vida era lá deles, ele era o marido, ela era só sua
esposa. Ninguém podia ou ninguém queria fazer alguma coisa.
Um dia, era
feriado, Virgínia adoentou-se. Ninguém sabia o que era, o que só
podia ser ruim, a gente só comentava a boca miúda, sussurrava mau
agouro.
Transtornado, o
Rodrigo foi posto para fora da casa das irmãs, ficou lá no passeio,
do outro lado da rua, mesmo, olhos vermelhos. Duro: vigiando, parecia
mais.
Foi então que todo
mundo quis fazer alguma coisa. Não sei o que era, se era a Virgínia,
se foi o feriado, se foi o exemplo firme , caridoso, maduro das
irmãs.
Eu fiz a primeira
loucura da minha vida de rapazote. Falei um monte de bobagens no ouvido de tio Olavo,
na época em que ele tinha a padaria. Assustou-se comigo, me pareceu,
e talvez por isso tenha aquiescido, para acalmar aquela minha
loucura.
Fomos os dois a
tardinha levar os pães, meu tio foi lá conversar com as irmãs,
conspirar em nome do doido do sobrinho, eu ficava do lado de fora.
Vigiando o Rodrigo, ele parado lá do outro lado da rua, feito uma
estátua ou assombração.
O convento vibrava
com o preparo da procissão, eu não querendo me distrair de jeito
nenhum, como se o Rodrigo fosse ler o nosso pensamento, correr
atravessando a rua de uma hora para outra, se eu só tirasse o olho
um minutinho.
Bateram os sinos, eu
tive que sair do caminho da multidão que agora mais silenciosa
invadia a rua. Afastei-me, virei indeciso para a portinha ao lado do
edifício. Meu tio arregalava os olhos para o que lhe dizia uma
freira velhinha, com uma tristeza imensa no rostinho enrugado.
Tio Olavo virou-se,
como se esperasse me ver ali, testemunhando tudo.
E eu disfarcei,
tornei a olhar para o outro lado. O coração virara gelo, caíra
para dentro do estômago. eu não queria encarar meu tio para não
ter que ouvir aquilo. não queria saber de mais nada.
Claro, logo eu
soube, ouvi o que ele tinha a dizer, logo a cidade inteira também
sabia. O enterro foi na manhã seguinte, dorido, mas discreto, discretíssimo, caixão lacrado e tudo mais.
Mas, quem sabe, não
é mesmo. Só Deus sabe, dizem as pessoas que pensam saber tudo. E eu
digo, não sei, será mesmo. Será que Deus sabe tudo, será que Deus
vê tudo.
O que eu sei, o que
eu mesmo vi, foi a cara do Rodrigo naquela tardezinha. Quando virei a cara, de medo e horror, até mesmo vergonha, o grosso da
procissão já estava na rua. Acho que o Rodrigo nem prestava atenção
direito, só ficava irritado. Mas viu alguma coisa no meio
daquele povo todo, descruzou os braços, abriu uma cara de quem levou
um tapa e não acredita naquele insulto.
Vi o que ele
enxergava, vi um monte de freirinhas encabeçando a procissão: todas
iguais, escondidas em seus hábitos, encurvadas. Vi uma freirinha só
tirar os olhos do chão, timidazinha. Vi-a enxergar o rodrigo. Vi que
ela não baixou mais o olhar. Vi-a sumir na próxima esquina, com o
rosto erguido. O Rodrigo ficou lá , parado, os olhos presos no vazio
deixado pela procissão, tremia todo.
Não tenho muita fé,
mas acredito que aquelas freiras eram verdadeiras santas. Talvez
ter fé seja só isso, aceitar que há pessoas melhores que a gente,
ou que as coisas são melhores do que a gente é capaz de imaginar.
Talvez eu fosse como
o Rodrigo, no fim das contas. Talvez eu não aceitasse que não podia
ter tudo o que eu queria, do jeito que eu queria.
E que, no fim, era melhor que
tudo fosse assim mesmo.
(inspirado num sonho
verdadeiro)
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