quarta-feira, 17 de março de 2010

[conto] monstro da semana:o homem do saco

MONSTRO DA SEMANA:
O HOMEM DO SACO

Sempre que Benjamim ouvia alguma história de fantasma, a evocação de um lençol flutuante com aspecto de gente, buracos onde deveria haver um rosto e olhos e boca lhe trazia a mente uma imagem bem precisa, bem concreta, que não era idêntica à letra da história contada , mas que a superava em espírito de assombro, assombração. Quando pensava em fantasmas, Benjamim lembrava-se de imediato do fantasma vivo que habitava o mundo morto fora da biosfera; lembrava-se do Homem do Saco.
Que era uma assombração sociável, andava sempre em bandos, os integrantes ,idênticos , fora alguma variação de tamanho: todos brancos como fantasmas, cobertos por não lençóis mas por trajes de uma só peça, macacões que lembravam eles mesmas sacos gigantes. Sacos de papel, de pano, de algum material grosseiro. Sacos de lixo. Evidentes  naquela brancrura toda , amassada, que fazia se destacarem na escuridão pós-toque de recolher aqueles perfis toscos, como que de bonecos mal acabados em tamanho de gente, eram os enormes olhos de vidro, tão escuros quanto as bocas, ou narizes, focinhos, o que quer que fossem ,projetados daqueles rostos mortos.
Mas os Homens do Saco eram assim chamados (e sempre à surdina) não porque pareciam sacos ambulantes, mas porque sua única função evidente na vida, no mundo morto lá fora, era carregar sacos. Sacos negros de plástico; alguns pequenos, mas, em geral, bem maiores que os sacos de lixo que iam para os centros de reciclagem da biosfera. Mais definidos, padronizados, variantes de um modelo básico (como os próprios Homens do Saco). Sacos de plástico negro alongados: os homens do saco os retivaram dos edifícios em ruínas que margeavam a redoma transparente da biosfera ; carregavam essas cargas com cuidado e as jogavam, sem cuidado algum,dessa vez, nas caçambas dos caminhões brancos em que sempre andavam. Às vezes, já havia uma pilha de sacos negros esperando essa última entrega, lá dentro; e, em outras, os homens de branco retiravam dois, três, quatro sacos negros de um mesmo prédio, de uma só vez.
Os prédios lá fora não eram muito diferentes dos prédios dentro da biosfera, a grande diferença era a falta de gente, a falta de vida. Os adultos não gostavam de falar das diferenças entre esses dois mundos ; os professores prometiam ensinar todos esses segredos e mistérios se Benjamim e os colegas fossem bons alunos e filhos obedientes. Primeiro deveriam aprender e respeitar todas as regras; depois, os porquês das regras – e a razão pela qual o mundo era como era, dividido – seriam explicados.
Mas antes, sempre:
Nunca, *nunca* deixar o lixo se acumular. Nunca - *nunca* - beber ou comer qualquer coisa que não estiver numa embalagem lacrada. Nunca brincar com bichinhos sem coleira. Sempre, *sempre* lavar bem as mãos depois das brincadeiras. Sempre avisar um adulto de qualquer bichinho ou pessoa que pareçam doentes (e se os doentes forem papai , mamãe ou irmãozinhos, avisar algum dos professores). Sempre avisar de algum estrago na redoma - “ge-o-dé-si-ca” - do condomínio  - sempre avisar se vir alguma pessoa estranha além da redoma transparente da biosfera, etc.etc.
Benjamim era um bom aluno e um filho obediente, e não entedia bem o porquê daquilo tudo. Sabia da gravidade da situação, mas havia algo de absurdo ... de criancice, até.. numa situação séria daquelas que nunca lhe era explicada direito. Às vezes pescava algumas expressões repetidas quase como rimas infantis nas conversas dos adultos, ou rimas mal-lembradas e remendadas com improviso , variações de temas comuns: “colapso ambiental”, “crise ambiental”, “apocalipse ambiental”; “pandemia”, “pandemias”, “pandemônio”; “guerra biológica”, “guerra bacteriológica”, “guerra ecológica”; “terrorismo genético”, “poluição genética”... mas, se perguntava a respeito de qualquer um desses enigmas bizarros, seus pais sempre mudavam de assunto com sorrisinhos e afagos de cabeça um cado irritantes.
Menos quando Benjamim mencionava os Homens do Saco: nesses momentos, os pais cortavam o assunto sem qualquer gentileza e mesmo com grosseria, e o menino podia ver em suas caras o mesmo medo que via nos rostos dos amiguinhos quando contavam histórias de fantasmas uns para os outros- só que pior.
Benjamim não sentia medo, ou, ao menos, pensava que não. A vida na biosfera era tranquila, talvez, tranquila até demais. O menino não se lembrava de já ter visto alguém sair ou entrar no condomínio, o que era bem esquisito. Sabia que havia gente que viajava – os velhos, especialmente, sempre viajavam, mas nunca voltavam; sabia que havia gente lá fora em outras biosferas como a sua: já fizera novos amiguinhos via cabo nesses outros condomínios, vivam prometendo se encontrar um dia, algum dia, prometiam os pais, sempre. Tudo o que não pudesse ser reciclado ou produzido pelas máquinas no condomínio,tudo o mais de que precisassem, chegava até a porta de cada apartamento através dos tubos pneumáticos que cruzavam a cidade inteira. Cada pacote, devida, minuciosamente examindado e esterilizado , e examinado de novo, antes de ser aberto.
Lá fora parecia haver só poeira, ruínas, prédios prestes a virarem ruínas ... e o Homem do Saco, em bandos. Em casa. Benjamim morava com os pais num apartamento no andar mais alto de um dos prédios nos limites do biodomo; a janela de seu quarto dava pra cidade deserta lá fora, mas a distância daquele outro mundo ele encurtava com um binóculo que pedira e ganhara de natal, com aquelas lentes especiais para ver as coisas no escuro, daquele jeito engraçado, quando o toque de recolher já fora dado e todos os pais imaginam que seus filhos estão na cama sonhando com...bem, certamente, não com o Homem do Saco.
Benjamim, sempre atento, percebendo a movimentação à distância, seguindo os cortejos fantasmas com seu binóculo mágico,através das grades da janela de seu quarto, através do mosaico transparente, da teia da redoma ge-o-dé-si-ca: fascinado com a rotina desses homens fantasmas,que pareciam não só entender esse mundo louco melhor que os pais do menino, como se mostravam à vontade, e senhores desse universo sombrio e vasto, além da biosfera.
Até aquela ocasião em que, tarde da noite, Benjamim ficara observando os Homens do Saco trabalhando logo além da redoma  – muitos sacos para carregar, naquela ocasião ; muitos daqueles fantasmas atarefados, fazendo coisas diferentes. Benjamim, concentrado na dupla que acabara de lançar um dos fardos negros na caçamba do caminhão e voltava para pegar mais – e, logo além deles, um dos colegas, parado, com uma arma dependurada nos ombros por uma alça, e binóculos como os do menino: olhando direto para Benjamim.
O garoto não pode parar de assistir, mesmo tremendo todo. O Homem do Saco abaixou seus binóculos, comentou algo com um colega a seu lado, apontando – apontando direto para Benjamim – mas o outro apenas deu de ombros, ocupado demais para se importar. O primeiro voltou a erguer os binóculos sobre seus olhos de vidro negro, baixou-os de novo ...e acenou vivamente para aquele menino apavorado que o via lá ao longe.
O garoto não conseguiu dormir naquela noite, nem na seguinte. Logo,não tinha energia, ânimo para sair do quarto: apenas esperando, debaixo de suas cobertas, que um Homem do Saco viesse bater a sua porta,ou puxar aquelas cobertas sem aviso, no meio da noite.
Benjamim esperou, esperou e esperou: nada aconteceu. Estranho: aquilo não foi um alívio. Foi como uma decepção. Nada de sombras que ganhassem vida, nada de homens fantasmas capazes de atravessar paredes. Como se o menino tivesse vislumbrado o terror no coração do mistério do mundo e esse terror fosse apenas...banal.
Quem estava  por trás da máscara da morte branca, invisível; o que estava embalado nos sacos plásticos,negros, de lixo. Benjamim brincava de esconde-esconde com a verdade, sabendo muito bem que a brincadeira se prolongara muito mais do que devia, já perdera a graça. O rosto da figura escondida na escuridão, escondida debaixo dos lençóis brancos era o seu.
Os pais de Benjamim ficaram apavorados com a prostração do garoto, é claro: quando as notícias começaram a circular, e elas circulavam rápido naquele pequeno mundo recluso e asséptico, seu apartamento esteve a ponto de ser lacrado em quarentena, mas a visita prestimosa do corpo de médicos locais logo dissipou qualquer suspeita de infecção.
O menino recebeu apenas uma prescrição de pílulas coloridas (como aquelas que o pai e a mãe tomavam todos os dias) e a recomendação de mais atividades ao ar livre (dentro dos limites do domo,é claro,rá rá rá). Ao se despedir do garoto, um dos médicos que mais se desdobrara em gentilezas deu aquele afago na cabeça de Benjamim e lhe lançou aquela pergunta costumeira,inevitável. Que o menino, sem muito entusiasmo, só soube responder de uma maneira:
“Quando crescer, eu quero ser o homem do saco.”

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