BICHO BURRO
Foi à meia-noite de uma sexta-feira treze que Orlando atropelou o gato-preto - e bem no meio de uma encruzilhada.
Teve tempo de ver o bicho parado no meio do caminho, a mancha de fuligem de quatro patas com os olhinhos pulsando com a luz dos faróis e foi só, mal pode desviar a caminhonete e não desviou o bastante. Ouviu o miado bestial e *sentiu* uma roda passando exatamente sobre o bicho, perdeu o controle, capotou, seu único pensamento,“Gato burro!”.
“Sortudo-sortudo-sortudo-sortudo de merda” foi o pensamento seguinte, quando se arrastava pra fora dos destroços, ileso, só tonto e meio mijado de susto. Bem, nem tão sortudo assim: a caminhonete não era segurada. Por outro lado, poderia ter se fatiado todo com os restos da sua carga:os cacos dos espelhos na caçamba, agora espalhados por todo lado. Bem, *por outro lado*...
Não houve buzinada de aviso, nem o grito dos freios, apenas a sombra de Orlando sobre os destroços de sua carga, a luz de faróis surgindo do nada às suas costas. Mal teve tempo de se virar...
...mal teve tempo de virar a direção e não virou o suficiente: ainda assim atingiu o homem parado como um poste na entrada da encruzilhada e o esmagou contra o veículo capotado, e então a caminhonete parou de uma vez.
A buzina, disparando como um alarme: Orlando desceu tremendo da cabine, procurou cauteloso o cadáver no meio daquele sanduíche de metal, seu cadáver. Sumira: Orlando estava ali mesmo, afinal, apalpando-se para ter certeza da própria presença. Beliscou-se . fechou os olhos com força. Abriu-os: continuava ali mesmo. Fechou de novo, e abriu de novo, e então ficou meio cego com os faróis que se aproximavam...
...refletidos no mar de cacos de vidro em que se transformara a encruzilhada, e Orlando sequer pode ensaiar a virada na direção, bateu de frente na caminhonete parada e, enquanto voava através do pará-brisas e quicava e rolava no mar de cacos de vidro, ruminava, ausente, que a batida deveria ter atirado o segundo veículo sobre o primeiro como um canivete se fechando, e o corpo no meio. O corpo de quem, mesmo?
Orlando passou com a caminhonete sobre o corpo estirado e como da primeira vez, capotou, e capotou feio. Ouviu-*sentiu*algo se quebrando e percebeu que não conseguia mais se mover:caído, jogado dentro da cabine, sobre o próprio pescoço , como um boneco. Tudo bem, precisava tomar fôlego antes da próxima rodada.
Mal completera o ensino primário, mas era ótimo em matemática. Porém, já perdera as contas naquele rosário de superstições: gatos têm sete vidas ou nove? E gato pretos? E os anos de azar dos espelhos quebrados: somavam-se batida após batida? Multiplicavam-se por cada vida de gato?Ou o número de vidas é que era multiplicado...
Soltaria um palavrão se pudesse falar. Ouviu os pneus cantando, gritando como o gato. Dessa vez, o motorista teria tempo de ver os destroços das batidas anteriores e teria tempo para se desviar ou pisar nos freios – mas o asfalto estaria todo tomado pelos cacos dos espelhos e a caminhonete rodaria como pião, sem controle . Orlando susteve o fôlego para esperar o impacto.
A buzina da segunda caminhonete continuava berrando noite afora.
Um comentário:
Pra variar, gostei. É a sua cara essa narrativa, ou melhor, seu estilo. Gostei da situação e do gato preto na encruzilhada. Gostei do trágico sem drama: apenas o leitor fica com a indagação: mas quanta merda... Afinal, pena mesmo eu fiquei foi do gato! Presença constante em contos sobre azar, acaba sempre redimido por meus escritores prediletos! Vc, nesse conto e Poe, que, ainda bem, o retira da parede chumbada! AMO gatos, se forem pretos, ainda mais! Tô te lendo direto! Não para nunca! Abração! Jorja
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