[Este é um tratamento que escrevi há alguns anos atrás para LETÍCIA ALBUQUERQUE, que estava então desenvolvendo uma projeto de animação em episódios curtos, público infanto-juvenil.
O foco da série é o dia-a-dia de duas irmãs , a adolescente JULIA e a caçula MARINA (sempre acompanhadas do cãozinho DADO ) em cenários e situações típicos da cidade de Belo Horizonte contemporânea.
Todos os direitos reservados à Letícia, é claro - 'brigadão, moça!]
[Esta história se passa no apartamento da família.
(sem diálogos)]
INT.CORREDOR - DIA
Mãe e pai vêm dos extremos opostos do corredor, pai saindo do quarto do casal, mãe, da cozinha.
Páram,estancam ao mesmo tempo, encarando-se. Apartir de agora, a montagem parodia o clichê de dois pistoleiros prontos a se enfrentarem numa rua poeirente do velho oeste.
Ambos vestem as camisas de seus times. O pai pai usa um boné com as cores do time, e o ajeita de vez em quanto como se fosse um chapéu de caubói num dia quente. Tem um palito na boca, q rola de um lado para o outro, tipinho desafiador.
A mãe tem um laço com a estampa do time na cabeça. Olhos semi-cerrados, masca um chicle-de bola como um caubói típico masca fumo. Ao inves de cuspir de lado, porém, apenas infla e estoura uma bola.
Silêncio.
Entre os dois, as portas dos quartos das filhas.
Marina aparece despreocupada na porta do seu, fazendo festa a Dado. percebem de imediato a tensão no ar [os pais sequer piscam e nunca desviam o olhar]; a menina recua sem se virar e fecha devagarinho a porta. o cãozinho , confuso com a situação, não percebe, desperta apenas ao se perceber do lado de fora, começa a arranhar a porta ganindo baixinho.
Julia aparece logo em seguida, a mesma coisa, alegre, mas nem chega a sair do quarto; ao perceber a tensão elétrica que se acumula no ar, fecha devagarinho a porta do quarto - e passa a chave tb.
Os pais se encaram, mantendo as poses desafiadoras.
Começam a se aproximar.
corta dos pés de um aos do outro, as pisadas lentas e decididas. Só que ao invés de botas com esporas, calçam chinelos.
Páram há cerca de um metro um do outro. a tensão é insuportável.
De repente, a mãe saca -- uma mão estendida, uma moeda plantada no polegar.
Ela grunhe uma pergunta ["cara ou coroa?"]
Ele grunhe uma resposta.
Ela lança a moeda no ar --
Cortes alternantes da moeda que gira em câmera lenta, pra cima, depois pra baixo, e os dois que seguem a trajetória com nervosismo: o pai que está de olhos arregalados e o palito caído num canto da boca, a mãe, também arregalada, mascando seu chicletes com enorme lentidão, agora
A moeda tine caindo ao chão. Os dois olham pra baixo ao mesmo tempo. O pai vira-se pra mãe e solta uma risadinha zombeteira. Ela faz cara de derrota, passa por ele arrastando os pés, em direção ao quarto. Ele lhe dá tchauzinho, sai saltitante na direção oposta, a da sala.
Depois que os dois somem de vista, Júlia e Marina abrem ao mesmo tempo, cautelosas, as portas de seus quartos e se encaram interrogativas através do corredor.
INT. SALA - DIA
O pai se senta esfregando as mãos no sofá da sala, diante do enorme aparelho de tevê. Pega o controle remoto, liga o aparelho, estira-se ,cruzando os pés na mesinha a frente.
As meninas aparecem juntas à entrada da sala. Marina pára, como que pensando melhor, volta, sempre acompanhada de Dado.
Julia se aproxima do pai,uma ruga de indecisão na testa, faz um gesto em direção à tevê, ensaia uma leve súplica -- o pai simplemente levanta o dedo num sinal de atenção, firme. A menina sai da sala batendo os pés, bufando.
Marina volta. Está vestindo uma camisa idêntica a do pai, mesmo no número, que é bem maior que o dela. Ele a recebe de braços abertos e com uma calorosa saudação, ela corre satisfeita pra se aninhar a seu lado no sofá.
INT.QUARTO DO CASAL - DIA
A mãe está deitada na cama, braços cruzados, irritada. No outro extremo do aposento, um televisor pequeno, a imagem ruim, além de difícil de distinguir, chiante.
Julia mostra a cabeça hesitante na porta do quarto. A mãe simplesmente faz um sinal apontando pra longe, "chispa!". A menina some resmungando ; ouve-se o bater da porta de seu quarto.
INT. O MESMO
A mãe está sentada na beirada da cama, o rosto quase colado à tela, o jogo já em andamento.
Marina surge tímida à porta: está vestindo a mesma camiseta que a mãe[essa tb. maior do que seu figurino]. A mulher sorri para a filha, chama-a com um gesto para se sentar a seu lado, Marina aceita toda satisfeita.
INT. QUARTO DE JULIA - DIA
Julia, injuriada, fala ao telefone. ensaia alguns cumprimentos alegres -- assusta-se com o aparelho: dele sai o nítido som de torcida organizada estimulando o time em campo.
INT. MESMO
Julia está em frente ao computador, agitada, atenta, clicando e clicando lendo o que aparece na tela, caçando o que fazer -- de novo, sem aviso, e quase fazendo a menina cair da cadeira, a zoeira de torcedores fanáticos explode do computador , como que de uma caixa de som num show de rock.
INT. SALA - DIA
O pai está sentado na beirada do sofá, tenso.
Marina entra alegre, dado a seu lado, a camiseta já trocada - o pai reage a uma infelicidade no jogo, salta em pé , arranca o boné da cabeça, atira-o ao chão, começa a pisoteá-lo - e dispara uma enxurrada de palavrões , devidamente blipados, é claro.
Dado gane e sai correndo como se tivesse levado uma vassourada. Marina, congela-se com os cabelos em pé e olhos arregalados, dá meia volta, sai da sala como que em choque.
INT. QUARTO DO CASAL - DIA
A mãe está sentada de pernas cruzadas na cama, os olhos arregalados de tensão. Marina - com a camiseta apropriada - está deitada em seu colo. o narrador do jogo lança um berro de frustração, a mãe sente, treme e feche os olhos de raiva, mas tem a presença de espírito de tampar delicadamente os ouvidos da filhinhas com as mãos. Só então lança a sua própria enxurrada de palavrões blipados.
INT.SALA-DIA
O eco prolongado de um grito de gol vindo do televisor: o pai está desalentado, olhar pasmo, o boné nas mãos numa pose humilde.
O telefone celular toca em seu bolso. Ele põe mecanicamente o boné na cabeça, atende mecanicamente o telefone - uma gargalhada zombeteira de mulher irrompe do aparelho.
INT.QUARTO DO CASAL-DIA
A mãe termina sua gargalhada vitoriosa e desliga o telefone, satisfeita. ouve sobre o barulho da tevê os resmungos do marido vindos lá da sala, seu sorriso abre-se mais ainda.
INT. O MESMO.
O longo eco de um grito de gol. O sorriso da mãe sumiu, ela está de boca aberta, sem acreditar no que acaba de acontecer.
Sem que ela perceba, absorta que está no próprio choque, uma mão surge na porta segurando uma buzina de caminhão, e aperta a buzina.
A mãe berra saltando da cama.
INT. SALA - DIA
Marina sai da cozinha com um prato de salgadinhos nas mãos, acompanhada de Dado.
O pai chega saltitante e rindo-se todo da molecagem, acompanha dos berros de raiva da esposa.
Marina vira-se para Dado e sacode a cabeça, em desaprovação à infantilidade dos pais.
INT. QUARTO DE JULIA - DIA
Julia está deitada na cama, um travesseiro sobre a cabeça, chutando o colchão de impaciência.
De repente pára, tira a cabeça do esconderijo, presta atenção, estranhando. Alguma coisa aconteceu e ela não sabe o quê.
EXT. MINEIRÃO - DIA
Apenas a imagem de um placar eletrônico,
1x1
e um "aaaah" de decepção coletiva dos torcedores ante o impate.
INT.CORREDOR - DIA
o pai e a mãe aparecem em posições inversas as que ocuparam na primeira cena, um em cada extremo do corredor.
Estão visível e identicamente desapontados com o resultado do jogo. Páram de susto, ao se descobrirem.
Estão embaraçados; evitam o olhar um do outro, coçam-se, não sabem onde por a mão nem o que dizer.
--até que Marina sai gritando de alegria de seu quarto, entre os dois, acompanhada dos latidos entusiasmados e saltos alegres do dado, soprando uma enorme corneta, jogando confete e serpentina por todo o corredor, sobre os pais também. Pra ela, o empate equivale a uma vitória dupla, que ela comemora à medida.
Os pais sorriem enfim, vencidos e vencedores, através desse carnaval de uma criança só.
...aproveitando o tumulto, Julia esgueira-se para fora do quarto, passa pelos demais membros da família...
INT.SALA - DIA
...alcança aliviada a sala, larga toda a precaução exagerada anterior, corre para a tevê, abraça-a cheia de carinhos beijos e sorrisos ao som de trombetas da festa ao lado...
FADE OUT
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