quarta-feira, 17 de agosto de 2011

[conto-curto] Monstro da Semana : Mais Palhaços


Diziam que o segredo estava no molho - todos diziam, mas ninguém sabia realmente.

Bem, deveria haver algum segredo por trás daquela história de sucesso. Alguma trapaça, alguma mágica, alguma diabólica conspiração. Porque aquilo tudo estava muito, muito errado.

E Dirceu estava pouco se fodendo para a fórmula do sucesso da O'Donnell's, fosse secreta ou não. Porque tinha um porcaria de rotina diária a cumprir e ela começara agora há pouco com o rádio relógio despertando-o de mais uma noite mal-dormida com os anúncios gritados e histericamente bem-humorados da rádio O'Ficial da cadeia de lanchonetes: que era a única estação no ar.

Desligou a porcaria do rádio-relógio; arratou-se até o banheiro, tomou uma chuveirada fria: enxugou-se nas tolhas bordejadas com a porcaria do logotipo ubíquo: "O'D".

Sentou-se na penteadeira do quarto, encarou-se no espelho bem iluminado. Suspirou profundamente - começou a aplicar a porcaria da maquiagem, me-to-di-ca-men-te.

Tinha que ser cuidadoso na aplicação da porcaria da maquiagem: sua pele estava assumindo uma coloração amarelada, por estresse, desespero, má-nutrição, emputecimento crônico, sabe-se lá o que mais. Não podia procurar os médicos da empresa (os únicos credenciados); não podia correr o risco de ser enviado para um dos cursos de reciclagem ...

Engolindo em seco, Dirceu aprumou-se na cadeira, focado. Escovava o cabelo tingido , o padrão usual, moda tornada norma - menos no caso dos funcionários veteranos da reciclagem: estes usavam perucas, o couro cabeludo todo marcado pelas cicatrizes do tratamento. Os funcionários-modelo.

Dirceu obrigou-se a religar a porcaria do rádio, querendo e não querendo : torcendo para ouvir na histriônica previsão de tempo algum anúncio de temporal .

Porcaria.

Saiu do prédio piscando sob a alegre luz do sol; nos dias de chuva, os turnos de trabalho eram alterados drasticamente - a empresa não podia correr o risco de que sua legião de funcionários aparecesse no trabalho com a maquiagem escorrendo cara abaixo.

Dirceu respondeu mecanicamente a pelo menos uma dezena de cumprimentos até chegar à lanchonete da esquina: todos aqueles estranhos, todos eles vestindo a mesmíssima porcaria de fantasia de palhaço.

No meio do caminho, deitado na calçada, o mesmo mendigo de sempre: que sorriu desdentado com aquela cara pintada, apertou uma buzina de palhaço e estendeu a mão para Dirceu.

A filial da esquina era onde Dirceu tomava o café da manhã, onde fazia o almoço, onde jantava, onde era obrigado a curtir o happy-hour compulsório toda terça e quinta, onde frequentava os churrascos familiares de fim de semana, e onde trabalhava.

Mastigando, mastigando, mastigando, mastigando o mesmo prato de todo-santo-dia: sentado em sua mesa de sempre - escolhida pelo gerente - Dirceu ruminava, ruminava. Incrível como aquela porcaria se espalhava; como a peste.

No início, havia apenas uma única, a original lanchonete O'Donnell's. Depois, havia uma filial em cada cidade - então, uma filial em cada bairro. Logo, todo mundo comia na O'Donnell's - por fim, todo mundo *trabalhava* para a O'Donnell's.

Que porcaria era aquela que Dirceu estava comendo, afinal? Aquilo deveria ter gosto de quê, pelamor de deus...

E aquele era o segredo, afinal. Dirceu sentiu-se gelar, depois sentiu-se queimando - teve que fazer um esforço tremendo para engolir o último bocado. O tempero mágico era a marca, o modo de vida, o pacote promocional completo: o signo cabalístico que fazia qualquer porcaria ter o gosto de manjar dos deuses.  Se todo mundo entoasse o mantra todo o tempo, então tudo ficaria bem, não era verdade? Tudo.

O'D,O'D,O'D,O'D,O'D,O'D,O'D...

Logo depois do fim do expedinte, Dirceu foi convocado à sala do gerente. Seu desempenho médio havia caído vinte segundos em relação ao dia anterior; aquele era um padrão preocupante, o gerente admonestava, sempre sorrindo,sempre afável. A empresa contava com Dirceu, os clientes contavam com a empresa, Dirceu corria o risco de ser desqualificado para a disputa do título de funcionário do mês etc.etc.etc.

Dirceu não dizia nada, não ouvia nada, zonzo, aéreo, a cabeça balançando lentamente não em concordância, mas porque suas pernas estavam bambas e ele tremia um pouco. Sorriu estupidamente quando o gerente fez uma pausa - sorridente - a espera de uma resposta a uma pergunta genérica qualquer, e então vomitou em seu rosto.

Foi promovido antes do final do mês.

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