quarta-feira, 16 de junho de 2010

[mini-conto] maus vizinhos

MAUS VIZINHOS
E há aquela outra história, sabe: a do sujeito que foi sepultado com um telefone celular.

O aparelho tocava sempre à mesma hora, começando logo no dia seguinte ao enterro. O caixão fora depositado num jazigo familiar, acima da terra: o som do alarme atravessava fácil a laje e era ouvido a algumas boas dezenas de metros de distância.

A música de toque era um funk fuleiro e estridente.

O coveiro era um senhor de idade um tanto surdo que não deu pela coisa , mas os visitantes regulares do cemitério, sim. Pediram satisfações à paróquia ; o defunto em questão não tinha parentes - nem amigos que o lamentassem: era um arruaceiro que bebeu até morrer . De fato, passara os últimos meses de vida bebemorando o falecimento recente da esposa, criatura ainda mais mal afamada . Ainda assim, a paróquia fez corpo mole, querendo evitar escândalo maior, esperando que a bateria do celular falecesse com o tempo.

O que não aconteceu: poucos dias depois da queixa e do deixa-estar um funeral lotado quase se transformou em tumulto, cancelado devido às interrupções gritantes e incessantes vindas do jazigo logo ao lado.

A paróquia foi obrigada a agir naquela mesma tarde; uma multidão  acompanhara a exumação. Afastaram-se quando o caixão foi aberto , devido ao mau-cheiro, mas acotovelaram-se logo ao redor do padre, que recebera com algum nojo o celular que o velho coveiro tirara de um dos bolsos do defunto.

Apesar da repulsa, o padre não estava menos curioso que a assembléia a sua volta. Era novo na paróquia; não reconhecia o nome na memória do celular, o do discador compulsivo e impertinente. O nome cruzou a multidão em sussurros, em busca de reconhecimento; quando alguém finalmente se lembrou de quem era e fez menção de alertar o padre com um grito, já era tarde.

O botão de discagem automática já havia sido inevitavelmente apertado: um funk estridente começou a ganir do interior do  jazigo logo ao lado.

Um comentário:

Revistacidadesol disse...

kkk! Por essas e outras q não tenho celular! Aliás, agora tou curtindo ópéra e jazz, Bom Despacho me fez um elitista cultural...