quarta-feira, 16 de junho de 2010

[mini-conto] onze e cincoenta e nove

ONZE E CINCOENTA E NOVE

Sem perguntas,sem regateio. Dinheiro vivo na mão: o tinir alegre da caixa-registradora, depois o tilintar ansioso dos guizos na porta da loja de penhores. Cliente assíduo. Viciados: previsíveis, regulares como relógios , até que se quebrassem de vez. Relógios baratos.



A mercadoria era quente, é claro,mas George não teria dificuldades em passá-la adiante. Relógio de bolso, longa corrente: lavrado a ouro, antiquado, sólido , mas parado: uma leve sacudida fazia soar peças soltas dentro da bolacha de metal.

A noite estava morta, o dia fora bom: George decidiu fechar a loja mais cedo, dar uma boa olhada naquela peça, na oficina dos fundos, que também era o depósito das mercadorias que selecionara a dedo.

Minúscula mancha vermelho-escuro na tampa do relógio: fuligem, resmungou George, sabendo muito bem que não era. Limpou o... “cisco...cocô de mosca...tsc”com um cotonete,cuidadoso, ao som de rock progressivo, em meio a décadas de valiosas lembranças alheias, seu acervo particular.

Uma inscrição:“De Claire para Leopoldo, com amor e devoção eternos”.

A conjução de nomes lhe soava familiar. Algum velho casal da vizinhança? Por precaução,George decidiu passar a mercadoria adiante o quanto antes. Quente demais, talvez.

As peças estavam de volta no lugar; George acertou o relógio , um minuto para meia-noite, deu a corda no mecanismo – clique:

O som viera de algum lugar às suas costas: rodas se movendo num chiado,leve rugido. Engrenagens. George se ergueu devagar, a boca dormente. Estaria tendo mais um flashback de ácido?

Em meio a suas tralhas de colecionador, na semi-escuridão: um relógio de parede, relógio-cuco, esquecido sobre uma bancada: falta de peças. Quebrado.

Os ponteiros giravam em sentidos contrários,loucos,confusos – pararam: um minuto para a meia-noite.tique-taque,tique-taque.

George aproximou-se confuso, tomou o relógio nas mãos com cuidado, revirou a caixa, colou o ouvido na madeira, depois encarou os ponteiros com ligeira estupefação.
O ponteiro maior se moveu.

O pássaro cuco de madeira saltou de uma sua pequena janela, penetrou por um dos olhos bem abertos de George , enfiou-se fundo em seu crânio, alojado de vez nesse novo ninho.

O relógio parou ao cair no chão da oficina, mas não se quebrou. Gotas de sangue escorriam pela madeira; uma delas preencheu uma a uma as reentrâncias de uma elegante inscrição: “De Leopoldo para Claire, para que nossos corações sempre batam em uníssomo”.

Um comentário:

Revistacidadesol disse...

Muito bom! Vc tá escrevendo muitíssimo bem!