quinta-feira, 15 de julho de 2010

[conto] o desejo de seu coração,à vista ou pelo cartão

O DESEJO DE SEU CORAÇÃO, À VISTA OU PELO CARTÃO

O guia parecia nervoso ao despejar suas três dezenas de sacoleiros nos arredores do Parque Municipal, esfregando com as costas das mãos a testa ampla e avermelhada, e brilhante , suarenta. Repetia de novo e de novo, a cada um dos clientes que descia do ônibus, as recomendações tantas vezes entoadas durante a viagem:
"...cuidado com bolsas, sacolas e carteiras (olha o degrau, minha senhora), laptops, celulares, câmeras, talões de cheques, cartões,crianças (até logo, meu senhor), não comam , não bebam nada que pareça suspeito (um minutinho, moça),não aceitem favores de estranhos - e, acima de tudo, não aceitem nada de graça (tiro sua foto num instante, dona)... E divirtam-se bastante; qualquer dúvida, me chamem ou fiquem à vontade para procurar os trolls da Polícia Militar (sim, são aqueles gigantes de cara feia, baixinho), lembrem-se que eles estão aqui para garantir sua segurança..."
Resmungando pelas dores nas costas, piscando para o sol da manhã de domingo:Armando não deixava de ouvir com atenção aquilo tudo (de novo) e de ruminar para si mesmo os termos e prêmios do seguro contra ataque feérico. A irritação era um mau disfarce para seu próprio nervosismo, em pleno contraste com o entusiasmo juvenil da esposa Florinda, que tagarelava freneticamente com as irmãs de compras, já esquecida do marido rabugento.
"E bem-vindos à Feira Duende de Belo Horizonte!", atalhou,afinal, o guia. Bem-vindos à puta que os pariu, pensou Armando.
Não tinha mais com quem compartilhar seu mau-humor:todos estavam interessados em explorar o ambiente tumultado e rico da Feira e Armando não podia senão seguir o rastro da esposa, gravitando em torno do grupo chilreante de mulheres a cada vez que ele estacionasse em frente de uma das barraquinhas.
Armando odiava ir às compras com Florinda, mas tinha que admitir que gostava de uma boa barganha. E a lembrança da lei mágica que imperava naquela feira até lhe aquecia um pouco o coração: "SEM IMPOSTOS!SEM TAXAS!". Mas aquele povo esquisito...
Artistas com olhos multifacetados e orelhas de morcego "scanneavam" os passantes a seco com golpes de vista subatômicos e tiravam suas medidas com guinchos ultrasônicos; logo, punham-se a fazer esculturas em escala dos clientes potenciais, idênticas ou caricatas ( melhoradas, às vezes). Murmuravam alguma coisa nos ouvidos de suas criações ao terminá-las ou então apenas sopravam-lhe nas bocas estilizadas e eis que os bonecos,feitos de um material impossivelmente plástico, ganhavam vida , passando a macaquear de imediato e sem qualquer vergonha seus modelos originais - para deleite dos mesmos.
Outros artífices, de olhos serenos mas cujas cores pareciam mudar de momento a momento, tabalhavam com seus longos dedos (pareciam ter bem mais de cinco em cada mão) jóias delicadas e vivas, que se moldavam aos contornos das usuárias como insetos gentis ou que vibravam ternamente de encontro a suas peles..
Depois de hora e meia daquele passeio, Armando estava com a garganta áspera de tão seca e não por causa do sol. Estava louco por uma cerveja , mas nem fodendo compraria uma ali.
Não, não fazia calor: o micro-clima do centro de Belo Horizonte era perfeitamente regulado pelas fileiras sem fim de árvores sólidas, imensas, que ensombreavam as ruas e refrescavam, esverdeciam a paisagem urbana – irradiando-se do caule principal da Afonso Pena por todas as avenidas principais:parando no círculo mágico da Avenida do Contorno.
Armando começava a achar que todo aquele oxigênio poderia estar lhe fazendo mal.
A Contorno era a fronteira alfandegária entre o mundo das fadas e o "mundo real",lá fora. Postos de vistoria por toda a sua extensão impediam a saída de qualquer amostra de tecnologia auto-replicante ainda ativa. Depois de colonizarem com tal majestade ecológica o centro de BH, as máquinas de fazer milagres haviam sido deixadas em paz e à vontade em seu mundinho próprio - desde que se ativessem a ele.
Sua “reserva natural”; seu local de exílio voluntário. O Parque Municipal era o coração do reino mágico: denso de nova vegetação, agora, obscuro, impenetrável, suas cercas e portões cobertos,lacrados por vinhas exóticas.  Pássaros coloridos de espécies indefinidas dançavam pelos galhos das árvores que se erguiam a alturas estonteantes, antes impossíveis; seu cantarolar quase hipnótico,esse murmúrio de riacho para além do ruído da multidão.
Telefones celulares eram praticamente inúteis no centro de BH porque as frequências de rádio eram todas usadas pelos pássaros e insetos nativos em suas confabulações incessantes,secretas...
Armando saiu de seu estupor com o esbarrão de um transeunte. Porra,dera pra dormir em pé,agora? Precisava de um gole de café, urgente... não, melhor esperar - mas a que horas a porra da caravana sairia daquela porra de cidade,afinal?!
Ao redor do parque, a Feira Duende . Ela era a face pública do fronte pós-humano, o grande ponto de contato direto entre o homo sapiens e... bem. Não havia uma classificação oficial - isto é, "humana" - para aqueles seres inéditos. Eles não se importavam de serem chamados de fadas e duendes, porém.
Todos aqueles os "feirantes" já haviam sido humanos, é claro . Isso, antes de terem abraçado a Singularidade Tecnológica - ou de terem sido absorvidos por ela, dependendo da opinião de quem se espantava ou apenas se assustava com o fenômeno. A Singularidade era o ponto em que a Lei de Moore encontrara a Lei de Murphy – o ponto apartir do qual tudo seria medido pela Lei de Clarke, a saber: "toda ciência suficientemente avançada é indistinguível da magia".
Como se esperava ou temia, a tecnologia desenvolvera-se de tal modo que ganhara vida própria, e inteligência . As “máquinas pensantes” pareciam ter nascido versadas em cultura pop,porém; desde seus primeiros ensaios de exploração, evitavam a todo custo o velho cenário clichê da guerra entre máquinas e seres humanos.
Não que fossem propriamente pacifistas:eram apenas pragmáticas ao extremo. Sua primeira geração de protótipos era microbiana, de mente paralela, comunal; em sua expansão , essa entidade gregária tomou atalhos já sagrados pela evolução natural, desde o surgimento da primeira célula: os atalhos do mutualismo,da cooperação – da simbiose.
Expandiram-se viroticamente, de início; depois como pólen, esporos, sementes e,então, colônias, organismos. Fundiram-se a espécies vegetais em nivel celular;depois, a algumas espécies animais, todos os hospedeiros upgradeados de forma sutil, para que os pobres humanos não se alarmassem com as mudanças.
Pois eles sempre foram o mercado consumidor final das máquinas pensantes.
Uma moça cega com uma cabeleira longa fina que ondulava leve, ritmicamente, pintava qualquer imagem em que o freguês pensasse no momento. Um senhor com antenas de bicho da seda, todo coberto de uma penugem branca como seu cabelo e barba, oferecia casacos e vestidos que tornavam transparentes pele e músculos de quem os vestisse, ossos e entranhas expostos orgulhosamente em seu lugar.
O caminho das máquinas mágicas era o mesmo daqueles negociantes,  seus sócios elfos,fadas,duendes,gnomos: os humanos que aceitaram a mutação artificial e que lucraram com ela , tornando-se capazes de realizar pequenos milagres graças a sua interface exclusiva com as micro-máquias (e de vender o produto de suas mentes privilegiadas sem pagar impostos ou taxas). Nenhum dos dois grupos – se é que eram ainda distintos um do outro - desejavam dominar o mundo;queriam apenas seduzí-lo .
Queriam se divertir com a humanidade.
Óculos para ler ondas de rádio. Bibliotecas inteiras codificadas em perfumes psicoativos. Pares de sapatos para serem dividos: os donos de cada pé podiam trocar de corpo (ou mente)à vontade,um com o outro. Bonés de invisibilidade,,,
Armando estava tonto – seria a pressão? Alguém pôs uma garrafinha de plástico em sua mão suada e trêmula; tomou agradecido, aliviado, um longo e refrescante gole – antes de se dar conta do que fazia e cuspir o conteúdo ainda na boca com força de chuveirada. Mas já era tarde demais.
Pensou ouvir uma gargalhada moleque sob o tumulto da multidão. Olhou em volta, não viu quem ria – olhou para a garrafa quase vazia em sua mão: no rótulo, apenas um smiley icônico. Enquanto o encarava estupidamente , seu corpo começou a formigar : o sorriso da figurinha se alargou ainda mais e ela lhe deu uma piscada safada.
Florinda continuava excitada demais na volta ao ônibus,à tardinha,para dar importãncia ao ar sorumbático do marido. Continuou conversando animadamente com uma companheira do outro lado do corredor até que a caravana parar num dos postos de vistoria. A prosa animada foi interrompida apenas quando um par solene de fiscais se colocou entre as duas comadres,solicitando educada mas firmemente que Armando se levantasse e os acompanhasse até lá fora.
Toda a trupe de sacoleiros observou com murmúrios de surpresa a passagem do pobre homem pelo corredor,enfiando as mãos transformadas em cascos sob os sovacos, mas sem ter como disfarçar o focinho de burro que lhe brotara da cara ou suas novas,alongadas orelhas.
Porém, a figura mais espantada com aquilo tudo era Florinda. Pois não conseguia enxergar diferença alguma na figura do marido.

Um comentário:

Revistacidadesol disse...

Trolls da pm foi ótimo...vou te indicar um blog de um poeta amigo que é um pm, mas não é troll:

wilsonnanini.blogspot.com