sábado, 17 de setembro de 2011

[conto-curto] Punho vence Espada que vence Revólver

[escrito para o Concurso de Setembro/2011 da comunorkútica CONTOS FANTÁSTICOS - tema: Western.]


"O sujeito que perde o duelo não é o que saca sua arma por último. Perde o duelo o infeliz que pisca primeiro."( velha lei do Oeste)


Havia essa casa em São Francisco, sabe: nos velhos tempos. Quando todo mundo vinha a São Francisco investir seu dinheiro suado, quer dizer: quando todos vinham a São Francisco apostar suas vidas.


O Garoto sonhava com essa casa em São Francisco desde pequeno...e, quando finalmente chegara à costa oeste, não era homem feito ainda, mas sequer era mais um moleque. O Garoto já tinha uma reputação pronta; ninguém que tivesse ouvido falar do Garoto o desprezaria por sua pouca idade.

A única coisa que seu velho pai lhe ensinara , a única coisa que lhe deixara na vida , foram os segredos do Pôquer. O pai era um mestre nas cartas, e sua única filosofia na vida era: você não precisa de mais educação na vida do que o pôquer, garoto. O jogo é como o tarô: você não lê as cartas, você lê os jogadores. Você não olha para a própria mão; você olha a mão dos outros, vê a mão refletida na cara de quem mais está na mesa.

O pai nunca tivera nada na vida. Gastava tudo o que ganhava nas mesas com mulheres e bebida. Morreu com uma bala nas costas, por conta de um mau perdedor. O Garoto não tinha nem como pagar um enterro decente para o velho.
Procurou o assassino do pai na cadeia.O xerife não ouviu a conversa dos dois, porque quase não houve: o Garoto apenas olhou com os olhinhos claros e frios para o grandalhão fedendo a uísque barato e urina no fundo da cela escura sem janelas; sussurou-lhe uma palavra ou duas, que não soavam como insultos, talvez um adeus. Foi embora da cidade naquela mesma noite; e encontraram o sujeito no dia seguinte, enforcado com seu próprio cinto nas barras da cela.

O Garoto nunca usou uma arma na vida; nunca precisou. Como alguém que sequer precisa das cartas para jogar pôquer.
Então: São Francisco. O Garoto não era um esbanjador como o falecido pai, era apenas frugal. Ganhava apenas o que precisava a cada dia, gastava apenas isso: chegou à costa oeste apenas com a roupa do corpo, e bastava.
O pai lhe falara daquela casa como que de um sonho distante ...essa , talvez, a segunda metade de sua herança. Era apenas um cortiço imundo, na fachada; mas a casa se desdobrava, lá dentro.

Abrigava uma rinha de galos; uma pequena porta no canto do alarido infernal, porém, conduzia através de um longo corredor até um cassino. Uma porta secreta, disfarçada de armário de bebidas: outro corredor, mais estreito, mais tortuoso, conduzia a um puteiro. Além da última porta , a única fechada, no corredor ladeado de duvidosas damas: escuridão, ecos, uma cortina aberta, e um denso antro de ópio. E além: um mosteiro.

Dentro, no fundo; o Garoto julgava que havia descido uma ladeira invisível, que já entrada no legendário labirinto subterrâneo da cidade. O silêncio era imenso, insuportável: como as padrarias sem fim da infância.; onde a única companhia eram as estrelas acima.

Ali, apenas pedra, algum gotejar distante, lamparinas de chama indecisa. Seu guia mudara a cada etapa da viagem; era agora uma senhora oriental, curvada de cortesias quase até o chão. Levou-o até uma cela escura...esse mosteiro: ele inteiro constituído apenas de um claustro, que era também o templo.

Sentado de pernas cruzadas, sobre uma esteira: um jovem chinês, careca, em roupas de camponês. Parecia adormecido; abriu os olhos com a chegada - silenciosa - da velha e do Garoto. Cumprimentou seu desafiante apenas com um leve aceno de cabeça; o Garoto sentou-se em outra esteira a sua frente. A velha acendeu duas lamparinas, saiu sem dizer uma só palavra, para que a Partida finalmente começasse.

A cela se ligava ao antro de ópio, o antro de ópio se ligava ao puteiro, o puteiro ao cassino, o cassino à rinha de galo: o dinheiro suado trocava de mãos sem cessar, as apostas tornavam-se cada vez mais nervosas quanto mais durava um Duelo, e aquele se estendia além de toda conta.

A noite virou dia, o dia pariu mais uma noite, e de novo, e mais uma vez. A maioria dos apostadores se recusava a voltar para casa, os negócios estancaram, a animosidade empilhada, acumulando-se. E, ainda assim, ninguém ousava interromper a Partida.

E todos tiveram que partir, os que puderam, afinal: os que conseguiram escapar ao desabamento. Quando a casa começou a tremer, quando a própria terra foi revirada; quando a cidade trincou com a tensão acumulada.

Dos que sobreviveram ao terremoto, quase ninguém se lembraria do Duelo; quase ninguém se lembraria que o vencedor jamais fora anunciado.

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