quinta-feira, 8 de setembro de 2011

[conto-curto] A teoria do moto perpétuo

[escrito para a Etapa VII do Desafio dos Cem Dias - do gruporkútico ESCRITA E ANÁLISE DE CONTOS - cujo tema é: "Baseado em fatos reais" - "Cada autor tem que desenvolver um conto a partir de um evento real específico." ]

Archie Fisherman lembrava-se bem de uma época em que o mundo era mais verde.

Lembrava-se com nitidez...bem, lembrava-se com uma pequena dor no peito... que as coisas já foram melhores. Bem melhores. Vivas. Não como agora. Supunha que, quando se é jovem, tudo é mais vivo - ou que, ao contrário, quando se tem quase oitenta anos de idade...

Mas não. Era mais que isso; tinha que ser. Senão... 

Assustou-se com o leve tinir do detector de metal. O peito pesado , a respiração difícil com a aridez do clima; deixou cair o instrumento em forma de vassoura, agachou-se - dolorido, estalante - começou a cavoucar a terra com as mãos nuas.

Era apenas uma caneca de latão. Escurecida de sujeira, ferrugem, lá sabia Archie; um pouco amassada e com a alça solta - poderia estar ali desde sempre.

Archie fez menção de lançar o pedaço de lixo longe , pura raiva, frustação - mais pontadas pelo corpo ao se erguer para o lançamento...Não tinha mais direito a fazer coisa alguma por impulso, naquela idade.

Deixou a caneca cair a seus pés, deixou o detector de metal onde estava; arrastou-se até o tronco de árvore morta, tombado,meio podre, onde deixara suas tralhas e a lâmpada de acampamento; sentou-se pesada, dolorosamente. Começava a fazer frio naquela noite enluarada do Novo México; ao menos, algo fazia os ossos velhos e cansados de Archie Fishermana tremerem debilmente.

Ele não entendia, não entendia mais nada. Tinha que estar ali. Tinha que estar escondido ali em algum lugar.

Archie tinha cinco anos em 1947 , mas lembrava-se com a mesma clareza da terra embraquecida pela imensa lua lá em cima... Lembrava-se da excitação de seus pais quando colocaram a filharada toda na camioneta  , aquela idéia louca, maravilhosa de fazer um piquenique fora de hora. Não entendia direito aquela conversa agitada toda dos adultos, mas aquilo parecia mais o natal chegando mais cedo naquele ano.

Teve que insistir bastante com o pai quando este o ergueu para colocá-lo na traseira do veículo junto com os irmãos mais velhos: onde a gente vai papai , onde a gente vai! E o pai , afagando-lhe a cabeça e sorrindo: nós vamos ver os marcianos, Archie meu garoto. Nós vamos ver os marcianos.

Não viram; ao menos, Archie não se lembrava de ter visto marciano algum, apesar do pai ter dito mais tarde que um monte de gente na região havia visto os homenzinhos cabeçudos que foram levados para longe pelo pessoal da base área. Ou seus corpos, ao menos.

Naquele dia, viram apenas mais gente como eles, procurando marcianos , e viram um monte de pedaços de metal espalhados num rancho, e só. A experiência toda fora um tanto decepcionante, no fim das contas.

O rancho era aquele, Archie tinha certeza. Achava que tinha certeza. Não sabia; sob a assombração daquele luar...cansado como estava... Não sabia mais. Mas tinha que ser.

Archie esquecera-se completamente daquilo tudo até a década de 70; estava morando na Costa Oeste quando começou a ouvir falar de "Roswell, Novo México" em todo lugar. Foi então que a lembraça emergiu, aos poucos.

Pois ela estava soterrada por um monte de lixo; por tudo o que ocorrera nesse meio tempo. As brigas, a separação dos pais. A maratona de empregos meia-boca; o casamento que era como um vitenã no front doméstico; a separação custosa, inevitável. A bebida, a reabilitação, as recaídas; mais toda uma série de momentos desaparecidos na névoa etílica.

Então, a redescoberta de Roswell. E eis que Archie participara de um dos momentos mais portentosos do século vinte e não sabia. Ou quase participara; quase. Vira os destroços ao menos, não vira?

As coisas iriam melhorar, ele acreditava. Já havia largado a garrafa de vez; no início da década de 80,  poucos meses antes da morte do irmão mais velho, quando finalmente perdera a luta de anos com o câncer, trocava com ele alegres reminiscências da infância, dos tempos no Novo México... Inevitavelmente trouxe a baila o ovni caído, entusiasmados, tentando transmitir ao outro de uma vez todas as informações que coletara a respeito, o caso se tornara um hobbie seu nos últimos anos e...

E o irmão simplesmente o encarou com uma expressão estupefata , murmurou hesitante: Archie...Archie, nós nunca moramos em Roswell, nem perto, nem nunca visitamos a região. Nunca.

Isso não podia ser. Archie se calara na ocasião, e se afastara do irmão, sequer fora a seu funeral: porque estava num bar na ocasião, num monte de bares, de fato.

Não podia, não podia ser.

Archie precisou de quase três décadas para encontrar seu caminho de volta do fundo do copo. Com o furor ufológico nesse meio tempo e com o surgimento da internet, a troca de informações tornou-se mais fácil ... mas também mais intensa. Intensa demais: o excesso de informação não tornava tudo mais claro, ao contrário. As contradições se amontoavam, se empilhavam, soterravam os fatos, a lembrança da infância: testemunhos e evidências físicas apareciam e desapareciam do mapa, da história, como outros tantos,esquivos ovnis. Os fatos e as versões mudavam de década a década quase como se...

Como se a própria História estivesse sendo reescrita, continuamente.

Então, tudo se tornara fria, dolorosamente claro há poucos meses. Descobrira vestígios da história final em especulações mais loucas, montara o quebra-cabeças por conta-própria.

A nave alienígena que caíra em Roswell em 1947 era movida por um motor quântico. É claro; isso explicava tudo.

Viagens estelares eram uma impossibilidade, um absurdo tecnológica, de acordo com o entendimento atual das leis da física. Logo, a tecnologia que move um ovni deveria ser capaz de alterar essas próprias leis , de transformar a própria realidade. De reescrever a História ; de "remixar" a memória das pessoas. O veículo provavelmente se movia saltando entre dimensões paralelas, transitando entre realidades alternativas como quem sintoniza um rádio e...

Cansado, cansado, cansado. E estava tão perto do final. Não podia desistir, é claro; não agora, depois que descobria que sofria de câncer de próstata.

Devia isso a si mesmo e a seu irmão mais velho; foram os fragmentos do ovni, foram eles que os contaminaram na infância, que os mataram tantos anos depois.

Bastava apenas encontrar a evidência, uma evidência qualquer. E ela estava ali, em algum lugar daquele ermo enluarado...

Um pequeno, minúsculo ponto de luz branca fisgou o olhar cansado de Archie. Logo ali, há poucos passos; dentro da boca negra da caneca amassada que acabara de desenterrar.

Rastejou como uma criança aquela distância curta; tomou a caneca nas mãos como se fosse o cálice na eurcaristia. Olhou fundo naquela escuridão e no pontinho de luz branca que agora se expandia se expandia e se abria como um caleidoscópio e que

O pequeno Ortaro despertou bruscamente de seu devaneio; sonhando acordado, como sempre, contemplando os reflexos cristalinos na pequena, mutante escultura de gelo inteligente.

Enquanto chiava e emanava seu vapor frio, a escultura se contorcia e se desdobrava, contando a Ortaro em mímica silenciosa a história predileta do jovem rebento, a dos reis-guerreiros ancestrais, suas batalhas, suas vitórias, suas tragédias pessoais - renascidas,eternizadas: suas lendas vivas, que eram a matéria-prima da vida de hoje no Quarto Mundo .

Fora despertado pelo burburinho além da entrada de seu favo; nas passarelas por toda a habitação subterrânea, um rumor corria solto, como a água sagrada , quando passava brevemente de seu estado de gelo para vapor: que os astrônomos reais haviam detectado uma série de explosões misteriosas na superfície do terceiro mundo apartir da estrela-mãe; que essas explosões seriam sinal de inteligência naquela orbe considerada até então quente e densa  demais para sustentar qualquer forma de vida.

Ortaro sentiu-se ao mesmo tempo imensamente animado...e também um pouco triste com aquela história espantosa. Pois ela confirmava algo que ele sempre soubera - que as lendas sempre o ensinaram: que o mundo é muito mais vasto que as galerias subterrâneas do Quarto Mundo, por mais extensas e intrincadas que fossem, e eram.

Mas essa história também lhe dizia outra coisa: que nada mais poderia ser como fora antes. Nada.

Ortaro começou a sentir frio, mesmo ali, abrigado na tepidez do lar ancestral. Sentou-se no chão rochoso,mas macio, acabertado, coberto dos líquens que eram a base de toda a vida. Será que... Será que nada é imutável?

Será que mesmo seu pequeno, querido mundo deixaria um dia de ser da cor deste escuro e denso e vivo verde?

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