sábado, 7 de janeiro de 2012

[conto] Versão Ômega - 2a. parte

***

A primeira vez em que eu morri foi por “fogo amigo”, sabe. Ainda que quem tenha me matado na ocasião certamente não sabia que nós estávamos do mesmo lado.

Há cerca de dois dias... é difícil marcar com precisão a passagem do tempo dentro da Zona... nós entramos no território de um “encouraçado”. Estamos em marcha desde então, paramos apenas alguns minutos no topo de um monte, o panorama aberto a nossos pés. O sargento Barnaby decidiu que só descansaríamos direito bem longe daqui; ninguém questionou essa escolha.

Os encouraçados são os t-rex da Zona de Exclusão. Nos primeiros anos da Guerra...quando as coisas ainda faziam sentido... eles estavam no topo da cadeia alimentar. Eram a infantaria móvel, e artilharia também, se
preciso. Eram como submarinos terrestres, porta-aviões. Não recebiam “missões” : eram simplesmente designados a certas aéreas. Que pacificariam, patrulhariam e defenderiam até que seus sistemas caducassem. O que pode levar décadas, ou séculos, se é verdade que certos modelos são movidos a isótopos radiativos.

Os protocolos de comando foram todos revirados ao longos dos anos de conflito. A Guerra mudava a todo instante, as velhas táticas tinham que ser revistas. Nações inteiras sumiram nesse meio tempo. Em outros frontes, onde o contato direto é viável, a reintegração dos encouraçados foi possível. Mas aqui, na loucura da Zona de Exclusão, ninguém consegue avisar aos encouraçados que a Guerra acabou.

São como tanques vivos: exoesqueletos blindados, semi-robóticos, de tamanhos e formatos variados...Auto-suficientes, capazes de canibalizar combustível, munição, peças substitutas do ambiente. Basta lhes dar corda
e soltá-los no mundo.

A primeira vez em que entramos num território encouraçado, só “sobrevivemos” pelo número absurdo de baixas. Aquele caranguejo robótico monstruoso...camuflado contra um paredão rochoso... hibernando, provavelmente, para poupar energia, até que seu sono cibernético foi interrompido pelo bando barulhento de homenzinhos perdidos... O encouraçado dizimou a tropa. Cessou o ataque, decidiu não pisotear nossos corpos e apenas procurar outro canto em que continuar sua soneca simplesmente por achar que havia destruído o inimigo por completo. Alguns membros sortudos do bando haviam encontrado abrigo durante o encontro, voltaram para catar nossos restos quando a poeira baixou e as chamas diminuíam.

Lá embaixo no vale , só o silêncio, essa desolação bizarra mesmo para a Zona de Exclusão. O mundo prende a respiração quando um encouraçado está em patrulha.

Os encouraçados não são inteiramente automatizados, contam com i.a.s de bordo avançadas, mas precisam de pilotos vivos, humanos ou de outras espécies. I.a.s podem ser ótimas quando se trata de ter uma visão estratégica do todo , uma perspectiva ampla... mas o dia a dia é território nosso, dos animais.

Quanto a se prover pilotos para máquinas de guerra projetadas para permanecer anos a fio em campo...quanto a criar soldados que possam existir em ambientes tão calcinados pelo conflito que talvez se tornem inviáveis para qualquer forma de vida... Bem. Como não havia Operação Cachorro-Louco na época, a solução foi incubar os pilotos dentro de seus veículos.

Os encouraçados são como a pele dessas crianças de pipeta... Parece que, em alguns modelos, o piloto é inserido ainda em fase fetal. De qualquer forma, parece que o sistema foi projetado para sustentar um animal até chegar a fase adulta: perfeitamente ilhado do mundo exterior, que lhe chega através do filtro da interface dos sistemas robóticos. Conhecendo apenas a Guerra desde a mais tenra infância... ou a versão da Guerra que seu invólucro r.v. lhe permite conhecer.

Suponho que a couraça tenha que cair um dia. Duvido que os pilotos dos encouraçados durem tanto quanto suas máquinas. 

Uma das funções primárias das i.a.s de bordo é a de babás dos pilotos em desenvolvimento constante. O que levanta uma questão curiosa: i.a.s robóticas só prestam para alguma coisa quando conseguem macaquear ou simular algum instinto animal. Mesmo que estejam preparadas para cumprir sua programação básica por séculos a fio... Talvez. Talvez elas precisem de algo mais do que diretrizes claras e energia de sobra para persistirem em suas missões. Talvez elas precisem de alguma motivação. Algo pessoal. Algo a que se apegar. Algo a que proteger. Como filhotes, por exemplo.

Na pausa breve de nossa fuga, no fundo dessa madrugada vasta, não ouvimos sequer o vento. E então lá longe no vale, um som leve que ganha força imensa por ser o único. A coisa mais assustadora que já ouvi dentro da Zona de Exclusão. Uma doce, suave, terna cantiga de ninar.

***

Schmit me acordou essa noite porque teve uma “idéia”. Eu não estava realmente dormindo, mas estava me esforçando bastante para fingir que estava, e Schmit não deixou.

“Ei, Ferreira. Tá dormindo?”

“Hmmm.”

“Ferreira, cê tá acordado?”

“Hmmmm.”

“Cara, acordaí que eu tenho que te contar um troço. Eu tive uma ideia.”

Eu me virei para ver, mesmo na escuridão do acampamento, os olhos arregalados e brilhantes do Schmit. Ele parecia chapado. Ele soava como alguém chapado.

“Vá dormir que você esquece essa tal ideia, Schmit – boa noite.”

“Não, espera aí cara , você tem que ouvir isso, você que é um cara estudado... Escuta só. Eu acho que a gente está delirando essa merda toda.”

A gente quem, cara-pálida, era o que eu estava prestes a dizer , mas ele não deixou.

“A gente está alucinando essa doideira toda, só pode ser. Escuta só. Segue meu raciocínio.”

“Hmmmmmm.”

“E se... Olha só. Esses nanotroços … Esses bichos que comeram os muçulmanos, que abriram o tal buraco no meio dessa zona... Eles estão se transformando, certo? Eles estão se adaptando, estão se especializando...”

“Sei lá.”

“Quer dizer, não dá pra saber do que os nanotrecos são capazes, pô. Daquele tamanho, eles se enfiam em qualquer lugar, podem mexer nas moléculas de qualquer coisa.”

“Olha...”

“Daí eu pensei, né. E se eles já tiverem entrado na cabeça da gente. E se eles estiverem mudando as coisas lá dentro do jeito que quiserem , fazendo a gente alucinar essa merda toda aqui fora. ”

Eu havia me sentado. Decidi que era melhor jogar, já que o Schmit não largaria do meu pé.

“Como drogas?”

“Isso! Como drogas, exatamente. Tá tudo na nossa cabeça, certo? Quer dizer, como é que a gente vai saber? Digo, se eles estão mesmo mexendo com a cabeça da gente. A companhia inteira pode estar tomando um bronzeado numa praia do Golfo agora mesmo, e a gente só consegue enxergar essa merda a nossa volta porque os nanotrecos estão lá dentro, ó, trocando as coisas de lugar no meio da nossa massa cinzenta. Fazendo a gente ver o que eles querem que a gente veja. Certo?”

E então parou de uma vez, me encarando sem piscar, aguardando a confirmação da sua viagem.

Pensei no “malin genie” de Descartes. Pensei em bancar o professoral, dar uma pequena aula de história da filosofia moderna ao Schmit para que a noite sem fim passasse mais depressa. Pensei melhor.

“Isso é pouco, cara.”

“Como é?”

“Isso não é nada. Se os nanobôs vierem atrás da gente... se eles são tão versáteis assim... não estou dizendo que sejam... mas, também, ninguém pode dizer que eles não são ... Mas se eles vierem atrás de nós com força total... Enfiar a companhia inteira numa 'bad trip' sem fim é pouco.”

“Bom...”

“Se os nanobôs são tão adaptáveis assim, eles podem simplesmente nos pegar...quando estivermos dormindo por exemplo... podem nos decompor molécula a molécula. E criar réplicas perfeitas da tropa inteira. Sem que
ninguém perceba isso. Porque estávamos dormindo quando aconteceu.”

Rá.

“Hein?”

“É. Você diz que eles podem nos fazer alucinar. Eu digo que se eles podem isso, podem também muito mais. *Eles* podem estar nos alucinando. Nós dois, por exemplo, podemos ser apenas duas massas ambulantes de trilhões de nanobôs em forma de gente, que devoraram o Ferreira e o Schmit e que agora pensam que são o Ferreira e o Schmit.”

Quer fosse feito de carne ou de nanobôs, de qualquer forma Schmit ficou de boca aberta, sem saber  como argumentar . Bom.

“E isso não é o pior.”

“Não...não é?”

“Não. Criar réplicas de corpo inteiro do Ferreira e do Schmit – por exemplo – pode estar dentro das capacidades dos nanobôs, mas isso daria trabalho demais. Agora, se eu fosse uma colônia de nanobôs com esse poder de computação todo, eu simplesmente faria uma cópia das mentes do Ferreira e do Schmit (depois de decompor e assimilar seus corpos e cérebros, é claro) e enfiaria essas cópias em simulações da Zona … ou em qualquer cenário de realidade virtual que eu quisesse... e deixaria essas cópias rodando. Achando que ainda estão na Zona. Que ainda estão vivas. Certo?”

Daí eu me virei e me acomodei em meu saco de dormir, e deixei o Schmit tremendo e suando na madrugada.

“Boa noite, cara.”

***

O grande chavão dos campos de batalha: que a guerra é o tédio de uma longa espera, quebrado por breves momentos de puro horror.

Chavões. “Os cães ladram e a caravana passa”.

Lá longe, no fundo da planura sem fim: um monte de pontinhos negros enfileirados, formigas a passeio.Ampliada pela mira telescópica de um fuzil: a fila é de uma dúzia de quadrúpedes em passo preguiçoso mas constante, longas pernas, longos pescoços, uma corcova. Sargento, que bicho tem  uma corcova só, mesmo, camelo ou dromedário? Calaboca e prestatenção, soldado!

Quilômetro e meio, dois quilômetros nos separando da cáfila perdida: mantivemos a distância num curso paralelo, atentos, por horas. Foi preciso o Caprini se retorcendo todo por um torcicolo, para  que alguém se virasse com olhos estreitados na direção contrária, o outro flanco, e então perceber uma outra comitiva, mais dispersa, menos distante , cada vez menos . Aproximando-se lenta, cuidadosamente, fechando-se sobre a tropa em longo arco.

Dado o alarme, o sargento Barnaby reorientou o bando todo num curso cruzando o caminho da “cáfila”. Caprini, O'Folley e os outros católicos na tropa fizeram o sinal da cruz e nós investinos. O segundo grupo percebeu a mudança, abandonou qualquer pretensão à furtividade, disparou em nossa direção.

Ou será a guerra uma longa e infernal espera, aliviada pelo momentos de combate insano ?

“Quem planta ventos, colhe tempestade”.

Os camelos...dromedários...o que fossem... sumiram antes que nossos caminhos se cruzassem. À nossa aproximação, seus perfis disciplinados, hirsutos começaram a ondular, por fim, desabaram: como o proverbial castelo de areia.

, uma areia muito fina, escura, viva: visível apenas agora que se juntava, quebrada a miragem ambulante. Uma massa agitada furiosa de nuvem de gafanhotos, revolvendo-se como se frustada pelo fim do ardil: uma unidade difusa que se amalgamava e que se dispersava atada por disparos elétricos, relâmpagos interiores em número crescente, esse pedaço de tempestade caído dos céus, furioso.

A tropa inteira freou a marcha.

À retaguarda, o outro bando se aproximava a galope , deixando baixo, mas denso rastro de poeira, aglutinado agora numa massa que contava talvez duas dezenas. Eram chacais, pareciam chacais ao menos, esses cães selvagens feios, hediondos...nada caninos, nada lupinos, aliás: apenas ferozes, desesperados... hidrófobos... o pelo crespo sujo da cor do deserto,os focinhos enegrecidos...

Não emitiam um som sequer. Ouvi talvez o som de suas mandíbulas abrindo e fechando, mas só,  mastigando latidos que não saiam, enquanto a ...matilha? - qual o coletivo de “chacal”, sargento? - abria-se novamente para nos cercar, aguardando a aproximação de seu parceiro eletrostático.

Não tinham olhos. Na mesma cadência das mandíbulas ferozes e reluzentes de dentes afiados, cada animal abanava, agitava um par de antenas que brotavam de suas órbitas oculares. As antenas eram longas, quase da extensão dos corpos dos chacais , ondulavam como – longas - caudas de rato, ladeadas por pequenas cerdas .

Mesmo em toda a sua agitação, percebia-se por toda a extensão das antenas e suas cerdas faíscas pulsando irregulares como a imitar a energia contida na própria nuvem viva de pó .

Foi aí que o tenente Hudson decidiu que deveria tentar o suicído novamente . Ora essa, por que não.

“Pimenta no cú dos outros é refresco”.

Escolheu atirar-se contra o demônio de areia enfezado, é claro. Saiu correndo da formação, aos berros...o Sargento Barnaby começou a berrar cruzado, que a tropa se dividisse , e então nós nos quebramos em duas metades de mesmo tamanho , disparando em direções opostas.

Não pude deixar de olhar para trás. Curiosidade mórbida, que seja.

Hudson caiu de joelhos a poucos passos da nuvem de pó que se aproximava, agora unida em estreita coluna , cruzada de raios como se fossem arame farpado. O tenente estava de braços abertos como um pai esperando o filho pequeno que vem correndo a seu encontro.

A coluna quase sólida de pó envolveu Hudson de uma só vez, sacudindo-o violentamente como se quisesse despertá-lo de seu transe histérico a tapa. Eu tive um pequeno soluço imaginativo nesse momento: já via, antes que a coisa ocorresse, o Hudson erguido coluna acima, como se arrebatado em estado de graça para os céus...

Mas não, mesmo sacudido como boneca de trapos, ele não desgrudou do chão: e sei lá por que raio de razão fisiológica... talvez houvesse ferro em demasia em sua dieta... o corpo de Hudson serviu como perfeito fio-terra para toda aquela carga eletrostática que a nuvem rasteira trazia consigo.

O demônio de areia sumiu num clarão cegante. Por alguns momentos , não consegui enxergar mais nada... sentia apenas o cheiro nauseante de carne queimada. Depois, as ordens latidas de Barnaby e o som de tiros.

Quando me recuperei, o fuzil já em punho, vi a tropa dizimando metodicamente o bando de chacais. Os bichos estavam simplesmente caídos a nossa volta, em convulsão. As antenas haviam se retraido como língua de sogra, pequenos rolos murchos, mortos.

Barnaby não sabia se recomendava o tenente para uma condecoração ou se o mandava executar assim que ele regenerasse por completo de seu estado de homem-carvão. Eu me senti na obrigação de lembrá-lo polidamente que seria complicado conseguir executar o Hudson, não importando o motivo. O sargento apenas grunhiu em concordância.

E por que tenho a sensação de que … com a exceção de Hudson... todos nós já nos habituamos a essa loucura. E por que diabos eu estou me questionando, afinal de contas.

***
Não. Eu poderia ter tranquilizado o Schmit naquela nossa pequena discussão filosófica. Eu poderia tê-lo lembrado que os nanobôs não podem nos assimilar. Que nós somos imunes a tudo. Até mesmo à morte. Menos, talvez, às assombrações.

Nós vemos coisas o tempo todo por aqui. Coisas que vêm e depois somem como se fossem as alucinações queridas do Schmit. Bichos furtivos, bichos ágeis, bichos mutantes. As coisas só ficaram realmente esquisitas quando os vigias noturnos começaram a ver crianças se esgueirando pelas bordas dos acampamentos.

Crianças. Isso, não. Crianças no interior da Zona de Exclusão,não. Elas só surgem nas fronteiras dos territórios dos encouraçados: onde tudo é mais quieto e onde a quietude é mais prenhe de irrequietude e de sustos, de aparições, fantasmas.

O primeiro a vê-las … foi o próprio Schmit, ou talvez O'Folley? Todos começamos a parecer uns com os outros , depois de algum tempo aqui dentro... O primeiro a vê-las não reportou a visita. Acreditou genuinamente que tinha enlouquecido de vez. Ou que estava vendo almas penadas. O segundo vigia a ver as crianças espectrais também ficou de boca fechada, sabe-se lá se tinha mais medo do que viu ou do que os outros diriam. Mas a primeira testemunha reconheceu o velho medo na cara do companheiro, no dia seguinte; trocaram algumas palavras em voz baixa, trocaram olhares silenciosos e inquietos , foram atrás do sargento.

Nada pode ser feito ou concluído, de imediato. Como disse antes, as tais aparições eram irregulares. A terceira só ocorreu ontem a noite.

Sabe, eu não posso mais dormir. Muitos de nós não podem, não conseguimos. Fingimos – dormimos de olhos abertos, a mente longe, os sonhos que não podemos mais ter invadindo o mundo  à nossa frente, às vezes, até que o Barnaby nos chame de volta à realidade, aos berros .

Eu vejo...coisas. Minha visão não funciona mais da mesma forma que antes de ingressar na Operação Cachorro-Louco, não depois do corpo sofrer e se recuperar de tantos estragos. Custei a perceber que aquela figura esbranquiçada deslizando silenciosa pelas rochas a uns trinta metros do acampamento ressonante estava mesmo lá fora e não dentro da minha cabeça.

Era uma menina, uma adolescente. Até onde sei, ela poderia ser mesmo um fantasma, tão pálida era, tão sem vida era sua cabeleira, mesmo os trapos que lhe serviam de roupas eram cinzas. Não senti medo. Apenas fiquei parado ali, vendo a menina se aproximar, abaixada, pé ante pé ; sentado dentro de meu cobertor, protegido contra o frio da noite...que eu não mais sentia...A menina, sim: tremendo ligeiramente, esfregando os bracinhos com vigor . Friorenta, frágil demais para um fantasma de gente.

Assustadiça: ela me viu finalmente, camuflado ali como um lagarto. Arregalou os olhinhos, abriu a boca – tapou-a com as mãos para não gritar, mesmo assim, deixou de lado todo o cuidado e segredo de sua missão, saiu correndo.

Eu me espantei, ora. Ergui-me , extendi uma mão prestes a chamar a aparição de volta... Parei.

Olhei para aquela mão extendida. Era a direita; estava toda envolta em trapos, os dedos amarrados juntos, com exceção do  polegar.

A mão esquerda estava guardadinha dentro de sua luva, inteira. Mas a direita... Ela não caberia mais dentro de uma luva. Não tinha mais o formato ou o tamanho certo. Os dedos foram reduzidos a quatro, o dedo médio e o indicador praticamente fundidos. São longos, agora, e enduros. Não prestam mais para manusear os apetrechos de soldado, não cabem no gatilho, não servem nem para puxar um zíper.

O que me tornaria um maneta, pois nasci destro. Exceto que no dia seguinte em que minha mão destroçada renasceu daquela forma desajeitada... eu me peguei abrindo e fechando zíper, puxando gatinho, tirando caca do nariz, tudo natural e instintiva, inconscientemente, com a mão esquerda sã. Não só a mão direita cicatrizou-se errado, mas meu cérebro também. E dois erros formam um acerto, parece.

Sentei-me, ignorando a garota que já sumia ao longe. Desembrulhei lentamente a mão direita de sua luva de trapos.

Sabe. Na vida civil, lá fora, bem, bem longe daqui... qualquer um de meus companheiros  de armas casca-grossas tiraria meu couro sem pingar uma gota de suor sequer. Aqui eu gozo de um certo respeito, faço parte do time, porque , durante a Guerra, eu matei meu oficial de comando.

Contemplo a mão nua, longa, aberta: a palma é esbranquiçada...não do branco-rosado caucasiano...mas um branco-branco, leitoso, frio.

Eu não matei meu oficial por rebeldia. E não tinha nada contra sua pessoa, ao contrário. Sempre o julguei ponderado, confiável. Sei que ele estava apenas seguindo ordens quando arrastou nossa tropa para aquela missão sucida, mas, quando o esfaque-ei pelas costas, eu também estava seguindo ordens: estava seguindo aquele imperativo que vinha do fundo das minhas entranhas e que me mandava sair correndo daquela arapuca. E saí.

As unhas de minha mão nova são escuras, e duras, muito duras; pequenas, em proporção aos longos dedos de que brotam, mas estreitas, e pontudas, encurvando-se além das pontas dos dedos...

É claro que fui pego. Estava na fila para a corte marcial  quando recebi o “convite” para participar da Operação Cachorro-Louco. A Guerra estava no fim; aceitei.

Antigamente, o único modo de tratar um cachorro com hidrofobia, um cachorro louco, era abatendo-o. O pessoal do Alto Comando decidiu que estava na hora de dar um emprego a seus próprios cachorros loucos. Melhor: que tal criar cachorros-loucos que não possam ser abatidos de forma alguma. Hein.

O dorso de minha nova mão direito é ainda mais escuro que minhas novas, duras e pontudas unhas. Não, unhas não. Sejamos honestos: são garras. E mão nenhuma, essa minha : pata.

Regenerar tecidos , órgãos , membros inteiros perdidos tem suas ..manhas. Mesmo para a super-ciência dos tempos da Última Guerra. O organismo precisa de um modelo... um espelho... para se recompor, para se tornar inteiro novamente. Os cabeças da Operação Cachorro-Louco aprenderam a  turbinar o processo regenerativo normal de qualquer ser vivo atrelando-o a seus moldes mais persistentes, mais básicos, profundos. Como se, recomposto, o corpo trilhasse o velho caminho enteogênico, o da sucessão das espécies na escadaria evolucionária...mas em sentido contrário.

O dorso de minha pata é revestido de escamas. Agora, eu também tenho casca-grossa como meus companheiros de armas. Couro de lagarto legítimo.

O corpo se adapata. Renovando-se, torna-se mais resistente... recorrendo a modelos, senão imortais, calejados, consogrados pelo uso. Aprimorando-se, até ...atualizando-se, rá!... tornando-se cada vez mais preparado para sobreviver num ambiente hostil. Tornando-se cada vez mais primal.

Aproximo minha pata de meu rosto, para descobrir seus contornos, descobrir se ainda é o meu rosto. Se ainda dá para reconhecer o Ferreira ali...

Eu sou o monstro. Eu sou o fantasma. Corra, criança, corra.

Um comentário:

Anônimo disse...

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