sexta-feira, 7 de maio de 2010

[conto] lugares comuns:fim de mundo

LUGARES COMUNS:FIM DE MUNDO

Até onde Oniyu se lembrava – mas era apenas uma criança –,o farol sempre estivera aceso, mesmo durante as horas do dia. E,até onde alcançava sua memória – e seu alcance era apenas de uma dúzia de anos – o farol nunca guiara um navio sequer até a ilha. Nunca houve visitantes, mercadores, invasores: até onde Oniyu sabia, seu povo era o único no mundo todo.

O garoto tinha bastante tempo para esses pensamentos vãos: na ilha , seu mundo, só se fazia pescar, caçar, cultivar a terra, cuidar da família, construir, consertar, orar aos deuses do céu e do mar. Era pouco, não bastava, muito estreito, aquele mundo: Oniyu queria ver o resto. Ninguém sabia construir barcos, mas o menino aprenderia sozinho e fugiria uma noite sem lua,e para bem longe.

Isso, se pudesse escapar da luz do farol, dos olhos do faroleiro , sempre atentos, acesos como lâmpada, naquele que era o ponto mais alto da ilha.

...aqueles olhos cansados, aquele rosto velho. O sorriso gentil (mas cansado): Oniyu desviava os olhos de vergonha, por seus pensamentos raivosos. Não odiava o velho faroleiro Yuemi; odiava a ilha, não sua gente ...odiava também o fardo que um dia o velho lhe passaria, o fardo que prenderia o garoto à ilha para sempre.

A aldeia escolhera Oniyu como sucessor do faroleiro Yuemi; o menino remoía sua frustração pois esta era a noite em que seria iniciado. Aquele era o início de anos de aprendizado:que acabariam quando o já idoso Yuemi fosse se juntar aos deuses do céu e do mar e Oniyu ocuparia seu posto.

Seguiam os dois em silêncio pela noite fria, penhasco acima. Da torre do farol,o ranger contínuo das engrenagens que faziam girar lenta mas incessantemente sua cúpula de cristal. O povo já se recolhera todo para o templo no fundo da caverna-mãe: o rito de iniciação do aprendiz de faroleiro era breve, mas secreto. Dentro da terra, todos orariam para que os deuses do céu e do mar dessem forças a Oniyu. O menino se lembrava da última vez em que algo assim ocorreria: muito pequeno ainda, tivera medo da semi-escuridão de velas e sombras e orações sussuradas no fundo do mundo.

Yuemi já tivera um aprendiz, antes, e este se matara, saltando do alto do farol.

O choro ameaçava voltar naquele momento, em que era Oniyu quem subia o penhasco em direção a sua sina. Mordia o lábio, apertava as mãos até as unhas se enfiarem na pele: prometia a si mesmo que também se mataria se não conseguisse um dia construir aquele barco.

Yuemi iluminava o caminho com uma tocha. A escada em espiral no interior da torre de pedra, o cheiro de óleo , o ruído e o calor das máquinas no fundo, e, acima, o fim da breve jornada: Onyiu nunca estivera antes no topo do farol e o espanto fez sumir sua amargura. O céu estrelado e o mar coruscante expandiam-se sem limites, ou, antes, até se abraçarem no horizonte ...

...aquele horizonte inalcançável: o peso do futuro derrubou o ânimo de Oniyu mais uma vez ; foi com uma resignação dolorida que se voltou para seu novo mestre, em busca de instruções, em busca de amparo.

O topo do farol se dividia em duas partes, a área de observação onde o menino agora amargava seu destino e,acima, a cúpula arredondada, semi-transparente, seu desenho bizarro, multifacetado, que envovlia a grande lâmpada  a óleo, a fonte de luz.

Fixa. Imóvel. Era a cúpula que girava,lenta,constante – seu ritmo também fixo, imutável como o mundo. A lâmpada pulsava na extremidade dum pilar menor dentro do cone da torre; Yuemi subia a escada em espiral estreita até o cume, sozinho, levando consigo a tocha e o peso dos anos.

Logo abaixo da lâmpada, uma válvula, que o velho girou com muito esforço. E então a luz do farol se apagou.

Oniyu sentiu frio, mas ele vinha de dentro. O vento no topo da ilha cessou por completo e o troar das ondas , também. Restava apenas a respiração ofegante do velho lá em cima, o resmungo mecânico das máquinas lá embaixo...e um sussurro indefinido à distância.

As faces opostas de céu e mar permaneciam claras e distintas mesmo naquela noite sem lua ... menos no distante horizonte. Uma bruma negra vinha de longe, idêntica em todas as direções; escurecia não só o céu como também o mar, escondia tudo na mesma mancha de tinta negra.

...devorava ondas e estrelas com a mesma facilidade, avançava cada vez mais rápido (os sussurros distantes cada vez mais próximos, mais altos, aquele bramido de tempestade represada), fechava-se num círculo cujo centro era a ilha – ou a torre...

...não, não devorava, não extinguia: não havia nada ali. ou havia apenas o nada: céu e mar se extinguiam como a chama, com a chama, sumiam do mundo - deixavam de ser. e o vácuo entrava mundo adentro, urrando.

Oniyu correu sem mesmo perceber para o pilar da lâmpada – mas o velho faroleiro já terminava de girar a válvula no sentido contrário e logo depois introduziu sua tocha numa abertura ao lado: a luz da lâmpada voltou à vida e uma leve brisa em sua testa suada bastou para confirmar ao garoto que o mundo voltara a girar sobre seu eixo.

Oniyu permaneceu parado, tremendo,aos pés do pilar, enquanto o velho Yuemi descia lenta,cerimoniosamente. Finalmente, diante de seu novo pupilo, de suas lágrimas, de suas dúvidas, de seu medo, o faroleiro balançou a cabeça em muda compreensão, em calma compaixão, e então lhe estendeu a tocha acesa.




(inspirado no título da obra de Jules & Michel Verne)

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