quinta-feira, 13 de maio de 2010

[conto] sabujo

SABUJO

Jimmy Bob tivera muitos cães em sua vida, mas nenhum tão fiel e obediente quanto o bom e velho Bumerangue. E danado de esperto, também. Aprendia todos os truques: rolava, pulava, fingia-se de morto , trazia de volta tudo o que mandassem ir pegar. Nunca se esquecia onde enterrava cada osso ganho . E sempre encontava o caminho de volta para casa

Grande companheiro de caçadas, o Bumerangue. Grande ouvinte ,e discreto; sempre respondendo alegre às piadas de Jimmy Bob, especialmente naquela tarde, quando o dono fora caçar em lugar proibido, com a espingarda não registrada . Tomara mais cervas do que deveria, o velho Jimbo;  recostou-se numa árvore para vomitar e praguejar um cadinho, sob o olhar curioso do cão. Desorientado de náusea, ouviu o rosnado de alerta de Bumerangue, logo seguido de um latido feroz e do som de uma moita se agitando a suas costas. Virou-se sem perceber, mirou sem enxergar direito, atirou e acertou em cheio, matando o garoto.

Não conhecia o morto; não devia ser da região. Carregava tralha de campista, mas quase nenhum tostão nos bolsos e vestia roupas de segunda. Vagabundo, fugitivo: o velho Jimmy-boy, sóbrio de susto, apostava que ninguém sabia que o moleque andava por aquelas bandas.

Enterrou-o bem longe das trilhas,lavou-se bem no riacho ali perto, voltou pra casa dolorido e alerta, com um excitado Bumerangue em seus calcanhares. Chegou tarde, ignorou roboticamente as reclamações da esposa, jantou pouco, dormiu mal.

Passou o dia seguinte fingindo que fazia consertos domésticos, a cabeça longe. Não se lembrava do rosto do garoto. Por quê? Lembrava-se bem das roupas, do corpo caído no mata. Mas não conseguia enxergar o rosto.

Bumerangue andara sumido o dia inteiro; fazia isso às vezes. Apareceu à tardinha: Jimmy Bob martelava uma cerca velha quando sentiu o fedor de pelo molhado, a agitação, o calor do cão a seu lado. Daí, um baque leve de algo sendo jogado no chão, e o primeiro latido de Bumerangue naquele dia, curto, satisfeito, pedindo a aprovação de seu mestre.

Jimmy Bob sentiu a mesma náusea do dia anterior. Voltou-se bem devagar; quase imaginara,antes mesmo de ver, o tênis do garoto, sujo de terra, caído a seus pés. E Bumerangue só fazia balançar a língua,imundo, sentado sobre as patas traseiras. O velho Jimbo berrou para a esposa na cozinha que iria levar o cão para passear e não esperou sua resposta antes de correr para a mata.

A cova estava revirada, o corpo,semi-exposto,braços e pernas em ângulos dolorosos: é apenas um boneco de trapos, Jimmy Bob dizia a si mesmo. Bumerangue observava confuso enquanto o dono jogava o tênis de volta no buraco e tampava tudo novamente,com fúria.

No dia seguinte foi o outro tênis. Na terceira vez, a jaqueta do menino.

Nessa noite, Jimmy Bob voltou abatido e displicentemente sujo para casa. Disse à esposa que Bumerangue correra para o mato durante o passeio, perseguindo uma lebre, e que não consegueria localizar o pobre cão, mesmo chamando-o durante horas. Ela o consolou carinhosa; Jimmy Bob prometeu , cansado, que tentaria de novo no dia seguinte, pelas crianças, ao menos, que adoravam o cachorro quase tanto quanto ele . Chorou bastante quando ficou finalmente sozinho, no chuveiro.

Dormiu profundamente naquela noite.

Mas teve um sonho bizarro. Enxergava o mundo em preto-e-branco,através dos olhos do carteiro. Na pele desse estranho, foi bater à porta de sua própria casa, levando uma entrega urgente. Ninguém respondia: apertou a campainha, bateu mais um pouco, chamou, repetiu,nada. Deu de ombros, deixou a encomenda sobre o tapete de boas-vindas, virou-se, foi embora e acabou o sonho.

Jimmy Bob acordou revigorado. Decidiu que iria dar um jeito de vez naquela maldita cerca, e seria naquela manhã. Depois do café , abriu a porta da frente cantarolante, com a caixa de ferramentas numa das mãos, e quase pisou na lebre morta jogada sobre o tapete da entrada.

Seu passeio pelo mato ocorreu mais cedo,naquele dia. Deu voltas cautelosas, parando muitas vezes, prestando atenção no zumbido contínuo da mata. A cova do garoto estava como a deixara no dia anterior, mas o que preocupava Jimmy Bob era a outra cova, mais recente, bem menor, bem longe dali.

Mas ela também estava intocada. Jimmy Bob teve que se segurar para não escavá-la, no entanto.

Disse à esposa que procurara por Bumerangue o dia inteiro, sem sucesso. As crianças estavam um bocado tristonhas, já aceitavam o sumiço sem volta. O velho Jimbo teve uma noite de sono bem agitada, daquela vez. O sonho parecia ter se repetido, mas estava confuso, errático, truncado, sem foco, mais selvagem .

Acordou com as crianças gritando de alegria. Chamavam por Bumerangue sem parar.

Chegou tremendo ao quintal, mas não havia cão a vista; as crianças estavam, de fato, procurando pelo animal por todos os cantos. Quando viram o pai, correram e se agarram a ele com abraços entusiasmados: Bumerangue voltou, papai, Bumerangue voltou!mas, rá rá, onde está ele, filhota?;a caçula não sabia, mas não parava de pular de alegria .então, aham, como vocês sabem que ele voltou, filhão?e então o filho mais velho puxou o pai pela mão, sorridente, enquanto a irmãzinha tentava ajudar empurrando o homenzarrão, e o velho Jimbo tentava rir com a brincadeira, e tentava resistir, genuinamente, mas estava sem forças. E as crianças o levaram para a entrada da casa e apontaram orgulhosas para a porta : a metade inferior, toda manchada de marcas enlameadas de patas de cachorro.

Jimmy Bob quase bateu na esposa para convencê-la a aceitar sua idéia maluca de ir visitar parentes do fora do estado. Ele estava de férias e a viagem seria boa para as crianças, espumava; ignorou as reclamações e já haviam partido antes do almoço.

Dirigiu o dia inteiro; só paravam para abastecer e comer. Nem a esposa , nem os filhos tinham coragem de lhe dirigir uma palavra sequer.

Tentou obrigar a mulher a revesar-se com ele no volante, noite adentro, viagem afora; dormiriam em turnos, no carro, mesmo, mas ela não aceitou aquilo e antes que iniciasse uma cena, os dois filhos prestes a estourarem em prantos, assustados, Jimmy Bob rendeu-se à razão e ao cansaço, parando num motel barato ao cair da noite.

Todos exaustos, caíram logo no sono,primeiro as crianças, depois a esposa,irritada por não conseguir furar o silêncio obstinado do marido. Jimmy Bob rolou por algumas boas horas naquela cama estranha. Quando estava finalmente cabeceando,despertou de vez com um ruído leve que vinha da porta.

Os quartos davam para o estacionamento, mas não se ouvia mais carros passando na estrada. Nem televisores ligados, nem rádios – nem mesmo o som do vento: apenas um arranhar tímido mas persistente na porta do quarto de motel. E depois , juntando-se a ele, um ganido leve, suplicante.

Assim que o sol nasceu, e antes que sua esposa acordasse, Jimmy Bob foi embora, deixando tudo o que tinha para trás. Levou apenas as parcas economias, sacadas de um caixa automático. Comprou uma passagem de ônibus para uma cidade de que nada sabia, senão que era bem longe; chegando lá, pagou à vista por um carro usado que estava nas últimas e começou a viajar por estradas cada vez mais secundárias e anônimas, cada vez mais fundo no mato.

Estava a três dias sem dormir e, enfim, sem gasolina,grana,comida,quando parou de vez, numa estrada de chão,no meio de uma mata tão densa que escondia o céu; no meio da noite. Delirava, febril:achava que era uma lebre presa numa armadilha de ferro. Já havia morrido de frio antes do raiar do dia.

O veículo só foi descoberto meses depois. Mas ninguém nunca achou os ossos de Jimmy Bob.

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