LUGARES COMUNS: O MELHOR DOS DOIS MUNDOS
[escrito para o para concurso da comunidade orkut Contos Fantásticos]
[escrito para o para concurso da comunidade orkut Contos Fantásticos]
Eustáquio não esperava uma recepção tão boa quanto aquela quando chegou ao Inferno. Uma recepção tão, bem... Calorosa.
"Dr. Eustáquio!"- bom sinal, logo no início: Eustáquio nunca fora "doutor" em nada na vida, a não ser em tirar proveito dos outros, mas nunca contradizia o puxasaquismo alheio - "Dr. Eustáquio, é uma honra recebê-lo em nosso humilde estabelecimento", e o gerente do hotel, chamado às pressas pela recepcionista, quase se prostara aos pés do "doutor" para beijá-los.
Ainda um tanto desnorteado pelo próprio falecimento recente, como alguém despertado bruscamente de sono pesado, Eustáquio foi apresentado à maioria dos funcionários da casa, perfilados como um pelotão a sua inspeção grogue, alertas e entusiasmados, como um bando de cabos eleitoriais iniciantes ou de esperançosos eleitores de periferia; depois dos minutos iniciais de confusão, Eustáquio entrou em seu módulo automático de político de carreira, apertando apenas com a força necessária cada mão estendida , como que pedindo sua benção.
"...e em nome de nosso staff e dos demais hóspedes"(o gerente era certamente um profissional do outro mundo)", ofereço ao senhor as boas-vindas ao primeiro dia de sua vida eterna, caríssimo Doutor Eustáquio!"
E o morto já se sentia em casa, realmente.
As dependências do hotel (e taxá-lo de "cinco estrelas" seria uma modéstia sem lugar em meio a tanto luxo) abrangiam toda uma ilhota tropical, situada num caribe imaginário e verdadeiro poutporri das melhores lembranças que Eustáquio tinha de férias passadas em Miami e de viagens furtivas feitas a certos paraísos fiscais. Todos ali falavam um dialeto infantilizado de inglês, com algo de espanhol e mesmo de português, perfeitamente acessível aos dons linguísticos limitados do ilustre hóspede e mantendo um clima de adorável exotismo. Onde quer que ficasse esse lugar, Eustáquio sentia-se bem longe do Brasil, graças a Deus.
No entanto, a velha raposa (seus oponentes o chamavam de outras coisas , mais próximas de cachorro vira-lata e hidrófobo) não perdera os instintos cínicos com a morte. À medida em que os dias sempre ensolarados se sucediam e à medida mesma em que os funcionários do hotel se esforçavam - sem nunca serem sacais:profissionais, profissionais!...- para tornar sua estadia no além a mais confortável possível , Eustáquio não largava o osso de uma questão: qual era a pegadinha?
Aquilo tudo certamente correspondia a uma visão do Paraíso que Eustáquio nunca se preocupara em construir,realmente, mas que agora achava irretocável. No entanto, como católico de fachada e filho da puta por vocação, o ex-político tinha a noção desconfortável de que aquele além-vida estava,bem, aquém de sua vida de pecador. Isso, se existisse mesmo um Deus no Céu, isto é, e era difícil descrer , senão de Seu juízo, ao menos de Seu poder, naquele momento.
Como qualquer criminoso veterano(especialmente os de colarinho branco), Eustáquio achava que estava fazendo o que era certo sempre que prejudicava intencionalmente alguém. Morrera de mãos limpas, mas sujara a vida de gente o bastante : se estava acima da lei - e mesmo de sua própria consciência- não estava além do alcance do ódio alheio. Mas tudo estava bem, desde que a merda não espirrase em seus ternos caríssimos.
E "merda" era tudo o que lhe restara nos últimos anos de vida,devorado apartir de dentro pelo câncer no intestino. Em meio à dor, Eustáquio quase reaprendera o significado (esquecido desde os tempos de catecismo) da palavra "remorso" - quase. Sabia que estava fodido, que o resto de sua vida seria puro sofrimento - e quê,depois do sofrimento, não haveria mais nada. Se tivesse sorte.
Mas ali estava ele,afinal.
"Essas coisas acontencem, doutor, fazer o quê.", filosofava o Miguel, que, apesar do nome latino, era um negro que cuidava do bar à beira de uma das piscinas de águas coruscantes, lotadas de "modelos" siliconadas : sem uma marquinha de biquini sequer à vista em todas aquelas dezenas de quilômetros de pele bronzeada à moda da casa.
O barman era uma das poucas pessoas naquele ambiente com que Eustáquio se dignava a trocar mais do que algumas palavras (mesmo assim, passava metade do tempo atirando-lhe piadas racistas, de que o outro ria com gosto). O "doutor" tinha , aliás, a ligeira convicção de que era o único hóspede real naquele lugar; além das beldades bibelôs, não via casais de idosos nem legiões de crianças que normalmente poluiriam o panorama ensolarado da beira da piscina. Ocasionalmente, travava contato com visitantes "estrangeiros", nebulosamente europeus, britanicamente pomposos e chatos,chatos, chatos, mas essas criaturas surgiam apenas quando eustáquio desejava jogar cartas ou sinuca. Sempre ganhava as partidas e as apostas feitas.
Não havia muito assunto para rodas sociais no pós-vida, afinal. A não ser os proporcionados pela tevê, é claro.
"Tsc,tsc", vaticinava Miguel , esfregando mecanicamente o balcão sobre o qual se debruçava Eustáquio, ambos concentrados no televisor sobre a estante brilhante,cintilante de bebidas. Não havia novelas a se comentar, nem futebol, muito menos - Deus nos livre - política: naquela tevê , só se assistia a carnificina regular dos telejornais: guerra, massacres, catástrofes naturais, crimes(e apenas os mais hediondos).
"É sempre assim por aqui?"e Eustáquio apontava com o queixo o mundo do outro lado da tela plana.
"Ah, é, sempre. ...olha só, caiu mais um avião em cima de uma escola - tsc,tsc. Fazer o quê,né. É a vida, seu doutor, é a vida."
Eustáquio tinha dificuldades em reconhecer os cenários da maioria daqueles horrores. Algumas reportagens, no entanto, traziam algo de familiar e igualmente indefinido, e mais incomôdo ainda: detalhes fugazes nas filmagens, vistos de relance antes das câmeras tremdias buscarem novos ângulos, novas vítimas.
"É um horror só, esse mundo. Mas, no fim, todo mundo leva o que merece, não importa o jeito em que acaba a vida. o senhor não concorda?"
O senhor doutor sorriu de si para si, tanto pela inocência do outro quanto pela satisfação de saber o quinhão que lhe coubera no final. Mas sentiu uma pontada inesperada de alarme depois de virar o copo de uísque e engoliu a dose com dificuldade.
"Espere aí um instante. Quem é que diz quem merece o quê, quem leva o quê?"
"Ué, é o senhor quem diz,doutor."
"Sou eu quem diz, é? Eu, só eu?"
"Ré. Por aqui, quem manda é o freguês,doutor"e o barman serviu mais uma dose ao freguês nada convencido com a explicação.
A morte devolvera décadas de vigor perdido a Eustáquio, mas não o tornara um amante mais imaginativo , ou carinhoso; após brevíssimas sessões entre-lençóis, chutava para fora do quarto qualquer que fosse a modelo bronzeada que arrastara dócil naquela noite (sequer se preocupava mais em cantar as mulheres de sua escolha, não precisava)e passava as madrugadas sozinho, assistindo tevê. Custara um pouco a perceber, aliás, que não era mais capaz de dormir, sequer de sentir sono. Tanto melhor: a programação televisiva de fim de noite era fascinante e, como tudo o mais no outro mundo, parecia ser feita por encomenda para o freguês.
Aquele pacote de tevê a cabo parecia ter um número infindável de opções e cada canal oferecia um só programa ou,antes, tinha como foco uma mesma personalidade enfiada em seu próprio,infindável programa de tevê realidade. Na primeira vez em que ligou preguiçoso o aparelho, Eustáquio reconheceu prontamente, e com agradável surpresa, um velho sócio que há décadas lhe passara a perna por uma ninharia. O sujeito era metido a atleta e amante de uma boa pescaria ; naquele seu programa exclusivo, era obrigado a passar por um "triatlon" excruciante, episódio após episódio, sendo perseguido até a exaustão por onças e mosquitos e jacarés e ariranhas e sucuris e piranhas num fac-simile do pantanal matogrossense , até ser devorado vivo em close-ups e planos médios.
Cada um dos antigos rivais políticos de Eustáquio: o horário político gratuito do além-morte era ocupado pela humilhação rotineira dos babacas,massacrados em debates nos quais eram os interlocutores de si mesmos, confundindo-se, enrolando-se em vastos monólogos imbecis. Invariavelmente, enxotados dos estúdios televisivos em que balbuciavam seus programas de campanha pelas próprias equipes de filmagem, as câmeras perseguindo-os rua afora, onde os esperavam as vaias populares, chuvas de ovos podres, depois pedradas, tudo terminando em penoso, prolongado linchamento. Era o carnaval,para Eustáquio, que ria-se selvagemente por horas a fio durante esses shows.
O mais divertido, porém,era o pacote de canais "adultos". Todas as mulheres que lhe deram um fora em sua longa vida de galinha: cada uma delas se tornara a estrela de sua própria série pornô hardcore, vítimas de todo tipo de perversão de que Eustáquio já ouvira ou não falar . Aqueles programas forneceram as melhores horas de diversão solitária que ele já jamais tivera.
Não havia muita variação nos scripts e os atores sempre reprisavam seus papéis, mas ora, essa. Diversão previsível , infalível : a tevê dos anjos, de fato.
Eustáquio estava tão satisfeito com sua nova vida após a morte que se dava ao direito de ser mais gentil e generoso, distribuindo sorrisos reluzentes (dentição nova, oferecimento do programa de assistência dentária post morten),acenos e apertos de mão vigorosos, gorjetas polpudas às graciosas garçonetes antes de apalpar-lhes os traseiros, a que elas sempre respondiam com risinhos sapecas (as notas que distribuía a rodo exibiam sua efígie, ele seria capaz de jurar, sem ter realmente certeza, mas, tudo bem: esse era o tipo de homenagem póstuma garantida aos grandes homens como ele fora...era...).
E, como a programação noturna, o horror cotidiano na tevê do bar beira-de-piscina parecia tornar tudo ainda mais doce,enternecedor.
"Mais uma dose , ô, tição. ...me diz aí: isso tudo que passa na tevê. Isso aí é... Você sabe."
"Senhor?"e Miguel nunca o olhava direto nos olhos,nunca deixava de esfregar o balcão ou os copos , se não estivesse lhe servindo novas doses.
"...real?... Digo... Isso tudo aí: é de verdade?"
"De verdade, doutor?":não havia sinal de pilhéria na gargalhada trovejante que o outro deu. No entanto, virou-se para um faxineiro com jeito de retardado mental que esfregava o chão do bar naquele momento e lançou-lhe um comentário numa língua que Eustáquio não reconheceu...não parecia língua de gente. parecia...parecia...parecia que , ao invés de dizer alguma coisa, apenas causava uma coceira na cabeça do freguês e fazia seu estômago embrulhar.
Os dois funcionários riram com gosto da piada secreta e o faxineiro afastou-se esfregando o chão e balançando a cabeça.
"Ré, tudo aqui é de verdade,doutor"
"Tudo?"
"Tudinho."
A trepada daquela noite foi mais curta do que o costume; mais violenta também. Eustáquio estava tenso pela primeira vez na morte, qualquer novo mimo da amante escultural e anônima o irritava cada vez mais. Até que deu por si espancando a mulher como se fosse um cachorro, de novo, de novo, de novo... só parou ao perceber que ela não estava reagindo - que, de fato, sorria, já sem um ou dois dentes na boca ensanguentada, o rosto inchado,enegrecido de pancada.
Não conseguiu se aquietar pelo resto da noite,não queria sair do quarto,não conseguia assistir a tevê apesar do anúncio de uma maratona de bestialismo estrelando sua primeira esposa. Lá pelas tantas,enquanto andava de um lado para o outro na vasta suíte, pensou ter ouvido um rugido abafado vindo do quarto ao lado. Aproximou-se da parede, colou o ouvido ao papel de parede espalhafatoso - afastou-se assustado quando o som se repetiu. Animalesco,parecia.
Eustáquio saiu de cuecas samba-canção no corredor silencioso -e...frio?...- e solitário, chegou de mansinho, olhando de um lado para outro, até a porta do vizinho. Prestando atenção;reconhecendo afinal a verdadeira natureza daquele som explosivo, quando se repetiu:o som de gargalhadas, como as que ele mesmo disparava em seus serões televisivos .
"Como é que pode?...",ele ruminava , cabisbaixo,olhando apenas para o fundo do copo, café da manhã a base de vodka. Miguel sabia sua deixa,infinitamente compreensivo, paciente:
"Aqui tudo pode,né, doutor."
"Mas tudo? Tudo?"
"Tudo o que patrão imaginar, pode. Vira realidade."
"Tudo o que eu imaginar?Eu?"
Mas Eustáquio sentiu que não era aquilo o que Miguel queria dizer:o silêncio sorridente do outro era resposta suficiente.
"Quer dizer que eu não sou o patrão? Quem é? Tem outro?"
Sorriso ainda mais largo.
"Tem um monte, doutor. Ué, o senhor não é o primeiro freguês a aparecer por estas bandas, não é mesmo? esse lugar é velho, seu doutor, bem velho. E bem grande. Muito grande, seu doutor: cabe um mundo de gente aqui."
Eustáquio levantou os olhos do copo para retrucar sem convicção quando um daqueles detalhes familiares e fora de lugar no noticiário sem fim prendeu sua atenção.
Mais um cenário indefinido de horror cotidiano: passada a catástrofe, a guerra, o massacre ...- ah, um atentado terrorista: restava do evento apenas o falatório incessante dos repórteres e um amontoado de sacos negros de plástico. Cadáveres mutilados eram enfiados de qualquer forma nesses envelopes : no primeiro plano, sob os pés do cameraman, um sujeito de meia idade tinha um zíper fechado sobre sua palidez suja de vermelho-negro. Mesmo morto, Eustáquio ainda era capaz de reconhecer o próprio rosto.
"...cabe todo mundo aqui. Todo tipo de freguês. E cada freguês tem uma vontade diferente. Todo mundo quer uma coisa diferente pra si e pros outros. Mas, aqui? aqui todo mundo tem o mesmo direito. Todo mundo tá certo. Todo mundo tem o que merece."
...e tudo aquilo era real. Para alguém.
A mesma cena patética havia se repetido inúmeras vezes diante dos olhos alcoolizados,contentes do freguês, naquele mesmo televisor: assistira sem perceber à própria morte fugaz sob formas diferentes, inúmeras, apenas mais um figurante abatido no horror épico imaginado por alguém. Por algum outro freguês satisfeito.
Cada um tem o que merece. Tudo ali é real. As duas afirmações são parte da mesma equação: o paraíso de um é o inferno de outros. E vice-versa.
Eustáquio odiava um monte de gente. Mas um monte maior de gente, muitas vezes maior, o odiava ainda mais. E todos eles iriam parar ali, naquele lugar, algum dia, como ele - com ele.
A velha raposa, o velho homo canis politicus: pela primeira vez sem palavras, sem respostas prontas. Balbuciante como um nenê: voltando-se para Miguel em busca de apoio - percebendo acima do sorriso servil,fixo do barman, sob as pálpebras semi-cerradas,concentrado no balcão que esfregava novamente: não havia branco algum em seus olhos.
Balbuciante,ainda,cuspindo desculpas e despedidas , jogando um maço de notas sobre o balcão molhado - algumas grudadas na superfície pela umidade, a maioria, espalhada pela brisa gentil dos trópicos - tropeçando pelo hotel afora, desviando-se dos cumprimentos amistosos que vinham de todos os lados, cada vez mais apressado - correndo, enfim, em direção a seu quarto, sua cela particular, seu refúgio no inferno.
Sem perceber, nem agora,nem antes, as câmeras de circuito interno de tevê que vigiavam cada um de seus movimentos de todos os cantos do hotel paradisíaco.
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