sexta-feira, 22 de outubro de 2010

[mini-conto] o terno novo do morto

O TERNO NOVO DO MORTO
Seu Macedo era um velhinho quieto e gentil, dauelas figuras constantes de qualquer vizinhança, lá, sentado num toco de madeira que se fazia de banco, todo o dia, o dia inteiro, na porta de casa, trocando prosa com qualquer passante. Ninguém sabia direito sua história. Viúvo, sem filhos:vivia sozinho, morreu sozinho e em paz,sem alarde; apenas o encontram em sua cama, após sumiço de dois dias.
Era querido, foi lamentado, sem drama. as poucas posses foram doadas a paróquia: de valor, tinha apenas um terno muito aprumado que ninguém vira antes, escondido no fundo de um armário,bem conservado,um brinco - decidiu-se que o bom Seu Macedo merecia ser enterrado naquela bela peça.
"Decidiu-se"; ninguém contestou a decisão ou reclamou, mas houve quem resmungasse pra si mesmo,contrariado. O Ramiro era um sujeito que rondava a vizinhança feito uma assombração ou uma mosca varejeira, sumindo e reaparecendo, entrando e saindo de confusões e de empregos. Não gostou do "desperdício",quando ouviu falar do caso;achou que poderia dar melhor destino pro tal terno( achou que sabia e faria melhor como sempre achava e se ferrava),resolveu dar outro fim para essa história. Quer dizer, depois de tomar alguns tragos na última quitanda que ainda lhe vendia fiado naquela cidade.
Pra sorte sua, achava, conhecia o coveiro de outras badernas, enrolou-o e embebedou o homem, deixou o sujeito roncando no sono da cachaça enquanto ia lá desenterrar o morto e o terno. Achava que trabalho de coveiro era fácil, uma bobagem, deveria ser; achava que tudo seria melhor fazer tudo escondido por uma noite sem lua. Foi um trabalho duro de merda; depois de horas de trabalho, ainda teve que parar no meio , que as pilhas da lanterna elétrica estavam no fim. Voltando pro barracão as escondidas, pra ver se tinha vela sobrando - não tinha; toca pro cemitério, imundo , a poeira tornada lama pelo suor,esgueirando-se  pelas sombras . descobrindo,afinal, uma lanterna novinha no casebre do compadre coveiro. praguejou a vontade , sob a proteção do ronco do outro.
O pior mesmo foi desvestir o morto; o corpo duro, Ramiro teve que quebrar os dois braços cruzados,trancados sobre o peito, para tirar o casaco prometido. Ia tirar a camisa do outro,também, por que não, ora essa. E um osso que despontava de um dos braços agora desconjuntados rasgou o tecido.Pragueja, pragueja. Bom, tira os sapatos, tira as calças - não, na cueca ele não tocava.
Enfia tudo num saco de estopa, taca a cobrir de terra toda aquela merda. Daí, o som de trovão, o cheiro da terra molhada: a lua era nova, Ramiro não atinara, e sumira porque tampada por nuvens pesadas.
Completamente molhado pelo aguaceiro; escondendo-se no casebre do compadre ainda roncando.  parecia um sujeito que tivesse fugido do próprio túmulo. Podia apenas esperar, gotejante. Esperou, a chuva passou, demorando pouco, afinal - e o sol começou a aparecer. Ramiro levara a noite inteira naquele vai e vem.
De jeito nenhum chegaria em casa sem que vissem o estado decrépito em que se encontrava. Praguejou, coçou a cabeça, olhou em volta, praguejou mais um cadinho...deu de ombros:tirou as roupas imundas, vestiu as do morto.
Jogou os trapos no saco de estopa, o saco numa lata de lixo. Deixou bem mais tranquilo o casebre do compadre -roncava,roncava-ora:mirando-se todo num espelhinho na parede, achava que nunca parecera melhor na vida.
De bem com o mundo,afinal;aspirando com gosto o ar da manhã molhada de chuva. Ramiro caminhou cantarolante até os portões do cemitério, e aí sentiu aquela catinga forte de enxofre e o peso de uma mão enorme em seu ombro, e a voz cavernosa que disse em seu ouvido:
"Não,não,não. Menino levado como sempre,hein? A sua saída é pelo outro lado, Seu Macedo."

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