terça-feira, 4 de janeiro de 2011

[conto] círculos viciosos,tomada dois: o fractalista

CÍRCULOS VICIOSOS,TOMADA 2: O FRACTALISTA
Virando à direita, depois à direita de novo e mais uma vez...e outra ainda? Ansioso para chegar ao ponto de partida, começar tudo de novo, tomar outro rumo, caçar um retorno, um ponto de virada em outra direção,mas,não: cada virada à direita numa esquina levando Aquiles cada vez mais para longe.

Perdera-se, só podia ser:a vizinhança sumira, quebrara-se - a rua conduzia o automóvel para falsos becos sem saída,como penínsulas dentro de quarteirões que Aquiles nunca vira antes, e, quando pensava ter chegado ao fim da linha, esgotado todo esse absurdo, ó lá, de novo!:mais uma esquina.

Para dentro, para dentro.A vizinhança suspeita: a luz baça, as cores fugidias na escuridão.Depois de algum tempo solto nesse aturdimento:como se o néon, ao invés de decorar as fachadas, delineasse os prédios e a rua mesma,encapsulando concreto e asfalto, ou cuspindo-os para algum espaço negativo -onde?A fachada da cidade era tudo.

E as pessoas: aqueles habiantes de outro mundo, os "transeuntes". passavam, passavam, e pareciam passar em velocidade maior que a do veículo. esses vultos incertos que se aproximavam na calçada: e se Aquiles ensaiasse desacelerar o carro para pedir direções, esses pedestres logo ali além da janela do passageiro despareciam chispavam calçada a fora - sumiam em traços de luz no espelho retrovisor. e Aquiles pisava fundo.

... chegar a algum lugar; chegar a algum lugar antes que a gasolina acabasse, porra. Mas:
Mas a cada virada de 90o. em relação à realidade, o tempo mudava - o clima e a passagem dos minutos: a cor e a consistência do céu noturno, as nuvens refletindo as luzes da cidade, flutuantes como fumaça de cigarro e gelo seco ( o recorte dos edifícios, o perfil ensombrecido e serilhando da cidade mudando de desenho, ritmo, direção) pressagiando...chuva ou estio?,impossível saber. e o tempo pulsava de modo alterado dentro do carro:o gemido do motor , os estalos mecânicos, rangidos, roçar dos pneus do asfalto...

(o aparelho de rádio mudava de estações sozinho...mudavam,antes,os estilos de música e o tom das falas dos locutores...ondulavam,retraiam-se, retornavam,mudados,às vezes mais maduros, para depois se tornarem esganiçados... indecisos ou arrebatados, explorando todas as escalas de cima a baixo)

;e como as próprias medidas de tempo e de escala musical, o medidor de gasolina oscilava de cima para baixo,de novo, de novo...a agulha nunca tocava qualquer das duas bordas do mostrator,no entanto.

...de volta, voltar, voltar pra casa, voltar para a avenida principal... meu deus, passar por tudo aquilo de novo... o dia de amanhã seria idêntico ao de ontem.mas cadê o hoje- onde estava Aquiles *agora*?

Fugindo, como queria fazer, vivia planejando, às vezes tentava , sumir daquela vidinha besta- fugindo, voltaria inevitavelmente ao mesmo lugar , o esforço da fuga devoraria suas forças e ele desistiria por puro cansaço.

Se parasse agora,talvez...?Se encontrasse um porto, poupasse...o que quer que tivesse ganho nessa viagem espiralada que esticava o caminho e tornava as distâncias maiores ainda ao invés de encurtá-las...Se parasse *agora*...
...agarrado a uma das paredes daquele labirinto, seguindo-a à risca, até o fim,até o desse. Mas, cansado, exausto desse vaivém; procurando uma saida fora da rota , algum sinal, meu deus - à esquerda...

À esquerda,  o horizonte da cidade se afastara bruscamente em algum ponto das eternas voltas. O fluxo contrário do mundo:cada vez mais rápido,os círculos concêntricos do cotidiano sobrepostos comprimidos um só borão - o lado oposto da rua da cidade do mundo era uma floresta geometrizada de cores e ondas um litoral caleidoscópico distante de Aquiles apenas por um mar negro sem fundo, um abismo...

Não olhe para baixo,não olhe para trás. não pare,não pare...
(inspire fundo... descubra o ritmo, o desenho desses ciclos... agora expire: )
Mãos no volante, Aquiles fecha os olhos, afunda o pé no acelerador, troca marchas, aperta a buzina na hora certa: "Sai da frente, ô tartaruga!"

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