domingo, 15 de maio de 2011

[conto] corpos frescos

CORPOS FRESCOS
[escrito para a Semana Steampunk/Dieselpunk da comunorkut Contos Fantásticos, sob o pseudônimo "Lord Melvin of Blimey"]

Trecho extraído dos diários do Dr. Robert K.:
...mesmo nesses tempos de calamidades, caos, guerras, rapinagem, desespero...ouso afirmar que a ignorância é o pior dos males, se não , um verdadeiro pecado capital, o oitavo, a ser denunciado e combatido nesse novo século das luzes elétricas. Pois, nesta era em que o progresso se faz ligeiro, a ignorância se mostra mais resoluta , viceja ...por vezes, parece se difundir como a própria Peste.


Que o leitor perdoe essas ruminações de um homem confuso e exausto. Creio que elas se justifiquem nessa hora crítica, que são uma conclusão necessária a essa minha narrativa por demais breve; que o tempo voa, como hoje também voam os homens... Quanto mais célere a Humanidade, mais veloz a passagem das horas, dias e anos...Tentarei ser breve, então, quer em minhas análises finais, quer na descrição de minha recente desventura.

Tenho assaz viva em minha memória...por assim dizer...as lembranças da primeira aula de anatomia que jamais frequentei. O auditório estava lotado e vibrava com nossas conversas frívolas ; o burburinho impaciente do jovem alunado cessou por inteiro, porém, às primeiras e roucas palavras do douto mestre, sua palestra lenta, metódica concomitante ao exame ...poder-se-ia dizer "inclemente", sem inibições ou restrições de qualquer tipo... do espécime que foi por fim descoberto, sobre a maca trazida por um assistente.

Pois era certamente um fascínio mórbido o que nos atraía em massa àquelas longas sessões de dissecação, mais do que o saber venerável do calvo ancião. E, no entanto...suas lições fixavam-se em nossas mentes jovens e tolas como inscrições em pedra ,inescapáveis como silogismos. Ao final da palestra, todos os principais órgãos do corpo humano quedavam expostos a nosso um tanto horrorizado,senão, nauseado olhar, sobre o lençol há pouco, alvo de uma longa mesa.

Ali, o escuro coração, pulsando de forma quase audível...quase em perfeita sincronia com o espécime aberto como um peixe..imagem desagradável mas, assevero, acurada... firmemente amarrado à maca por braços e pernas e pescoço, e que tremia agora, levemente, enquanto a criatura tentava se libertar, a cabeça girando debilmente de um canto a outro do salão, incapaz - graças a Deus! - de firmar seu olhar sobre qualquer ponto fixo que fosse, sobre qualquer um de nós... A cabeça hedionda, a boca abrindo-se e fechando-se - as analogias que nos perseguiam, insistentes: como um peixe recém fisgado,moribundo...- sem emitir som algum além do mais tênue gemido ( seus pulmões haviam sido cuidadosamente removidos ).

Aquela cabeça poderia ter sido então separada do corpo e assim os movimentos espasmódicos das duas metades tão rudemente separadas não cessariam (o que vim a testemunhar em outras ocasiões); aquela caricatura diabólica de vida ... o *revenante*... só encontraria o tão merecido descanso final através das chamas purificadoras do crematório, a que estava destinada após aquela impressionante aula.

Eu certamente trazia sempre comigo, em coração e mente, e aonde quer que fosse, desde então, as impressões indissolúveis daquele momento de descoberta: mesmo um corpo aberto ao mais atento escrutínio ainda guarda segredos. Mais: a morte não é mistério algum...mas a vida,sim.

Revivia esse pequeno credo, mesmo em minha última viagem ao continente. A ciência médica evoluíra bastante desde a época nem tão distante assim (não, nesses tempos movidos a vapor)de minha juventude estudantil. Todavia , o corpo guardava seus segredos... mesmo hoje, as causas da Peste Rubra não são de todo claras.

Ainda que seus efeitos fossem desde sempre evidentes, de forma terrível,marcante. A história do último século e meio era bem visível a nossos pés, enquanto viajávamos,eu e minha pequena equipe, à bordo da nau
aérea Vitória I , sobre as ruínas da antes orgulhosa Europa Oriental. Essa era uma viagem exploratória das mais temerárias, em seu intento de ir tão fundo e dentro daquele território negro, morto, tão longe da civilização e dos postos de abastecimento do precioso gás "éolo", que inflava o imponente dirigível - esse exemplar o mais pujante desta era da Máquina e do Porvir, do Movimento e da Velocidade. Essa maravilha do engenho humano, em competição feroz, em corrida perpétua com os navios a vapor que ora dominam os mares, como os dirigíveis mesmos dominam os céus.

O comandante da Vitória I, o bom, ainda que irlandês, capitão William Burke confidenciou-me uma pequena curiosidade em um de nossos serões à hora do chá: que aquela maravilha aérea estava condenada a jamais existir , não fossem as mais terríveis e imprevistas circunstâncias (essas mesmas, que experimentamos em nossos tempos divididos entre as luzes elétricas do progresso e as trevas sepulcrais da superstição). O santo podreiro não canonizado de todos os aeronautas - e aqui perdoei o catolicismo atávico do comandante - fora um certo sacerdote luso-brasileiro que, assim o afirmava meu anfitrião, estabeleceu sozinho as bases práticas da ciência e da arte do vôo humano. Seu gênio foi presenteado apenas com o exílio pela estultice papista... e esse gênio se perderia, desperdiçado, não fosse o advento da Peste Rubra, que levou à debandada das cortes européias por todos os meios possíveis...agora, adicionado aos convencionais, os marítimos e terrestres, o meio aéreo de locomação, redescoberto às pressas apartir da obra daquele sábio antes desprezado, refinado até o presente estado de perfeição. O excêntrico sacerdote terminaria seus dias com um celebrado bispo da Igreja Católica - agora não mais romana, entronada que fora e ainda estava, em Malta - na corte imperial ibérica, nas Américas.

Ainda que a história desse sábio tenha tido um final dos mais consoladores, tal não se deu com a Europa que ele e seus compatriotas tiveram que abandonar tão tragicamente. Mas, se para alguns pensadores, as guerras são o motor da História, pode-se talvez acrescentar que as tragédias são o motor do Progresso. A irrupção da Peste Rubra...a invasão das hordas revenantes...podem muito bem representar o fim do sonho milenar de civilização, que é o europeu...mas forçaram as Américas e o Oriente a abraçarem esse sonho e a levá-lo adiante, a carregarem a tocha da Ciência, da Indústria...cujo exemplo mais vigoroso e sublime encontra-se em nossa amada Grã-Bretanha, por certo.

Ironia das mais desafortunadas, que o mal tenha sido primeiro descoberto entre os povos eslavos, essse mais bárbaro e , ao mesmo tempo, primal dos povos europeus. Nas primeiras décadas do século passado, às margens do Mar Negro, as velhas histórias de mortos que voltavam do "além"para obsediar os vivos renasciam, por assim dizer, com um ímpeto completamente inesperado. Essas não eram meras histórias de espectros diáfanos e balbuciantes: os monstros noturnos em questão tinham corpo, e faces, e eram via de regra as de membros bem conhecidos, e recém-falecidos das comunidades atacadas. Esses fantasmas tinham nomes e suas aparições deixavam marcas; não eram mais anedotas trepidantes para as noites de vento uivante, ao redor da lareira. Eram violentos casos criminais, em número crescente. Pois esses mortos renascidos perseguiam e atacavam os entes queridos que até pouco tempo se enlutavam com seu passamento; matavam-nos, se tivessem oportunidade...e as vítimas logo se juntavam a seu cortejo infernal numa dança macabra rodopiante, compondo um círuclo de raio cada vez mais amplo.Tal era o alarme, o pânico que esse estado de coisas, que emissários reais foram enviados às regiões atacadas para averiguarem a situação ...jamais retornaram à corte para apresentarem seus relatórios, porém.

Ou talvez tenham retornado. O fato é que, em poucos anos essa verdadeira, literal praga havia se espalhado por todo o continente, barrada apenas pelos mares e pelas montanhas , como se levada nas costas de incansáveis mensageiros. "Revenantes", são assim chamados comumente, esses seres que outrora foram humanos, e que deixam de sê-lo , ingressam numa outra ordem da natureza, ao se erguerem de seus túmulos ou leitos de morte. O nome é o mais comum , vulgar, é o que persiste, ainda que muitos outros com ele competiam no imaginário continental: lamia, strigoi, varcorlac, nosferatu... ou, simplesmente, vampiro.

Malgrada a neblina das crendices populares, a descrição do comportamento desses revenantes era consistente: compunha um quadro clássico de patologia. Os mecanismos de disseminação do mal, logo evidentes: a violência física, a troca de fluidos, como saliva, sangue, sêmem. Sua manifestação, igualmente clara: se a vítima não morre imediatamente pela gravidade dos ataques, definha, febril, por mais infímos que sejam seus ferimentos. Morre em questão de dias, ou assim parece: pois seu corpo frio e sem pulsação não apresenta os sinais costumeiros de decomposição,mas,antes, em cerca de três dias após seu "falecimento", é
reanimado, guiado pela mesma sede de sangue e inteligência selvagem de seus "assassinos".

Por mais assombroso e incompreensível que fosse o fenômeno, sua natureza puramente física,e não espiritual, "diabólica", como tantos o imaginavam, também foi demonstrada em pouco tempo, e a custo de terríveis,repetidos exemplos: muitos foram os homens de Deus que encontraram hediondo fim, juntando-se à malta semi-viva, após tentarem conter seu avanço famélico com bravas orações e ritos exorcistas. Não: a Peste Rubra é o que é, uma moléstia, a mais terrível e monstruosa já encontrada pela Humanidade - e, ainda assim, tão natural como o mais comum dos resfriados.

Admito sem vergonha que o mecanismo exato da Peste ainda nos é desconhecido, mesmo após quase século e meio de enfrentamento desse mal ; não há como contê-lo senão através da destruição completa, quer por ácidos, quer, como é mais usual, pela ação do fogo, dos corpos revenantes. A teoria é sólida,porém, e sempre em desenvolvimento: faltam-nos mais evidências, apenas, ainda que todos os sinais apontem para partículas minúsculas, germes (que nossos microscópios ainda não alcançam , mas - eu o afirmo - que logo se tornarão claros e límpidos a nosso olhar, visto que a técnica se aperfeiçoa a cada nova geração), que atuam nos corpos infectados de maneira universal, invadindo todos os seus recantos mais ínfimos, apropriando-se dos mecanismos do corpo como vermes parasitas, sequestrando-os, por assim dizer, para seus próprios fins... que são, de fatos, os mesmos de qualquer ser vivo: reproduzir-se,  expandir-se continuamente.

Para curar esse mal, há que descobrir sua origem. Eis , pois, a razão de viagens ousadas como a da Vitória I. Como registrado nessas páginas, observamos, coletamos, examinamos, dissecamos, catalogamos diversos espécimes do "revenante" típico nos últimos dias, quer em suas manifestações humanas, quer nas animais, a mais comum sendo a canina. Essa tarefa algo tediosa é necessária, a Ciência se faz dos dados rotineira e sistematicamente acumulados e comparados... nosso objetivo ,porém, era o de ir mais longe. Rastrear o mal até seu ninho, ou o mais próximo deste que nos permitissem as circunstâncias.

Como dito, constrangia-nos a necessidade de reabastecimento regular; o tempo era nosso inimigo e nosso itinerário, mais improvisado do que seria ideal. Seguíamos pistas tênues, em especial, registros vagos das manifestações mais antigas da Peste, em busca de sua origem geográfica precisa. Distraía-nos também algumas especulações talvez um tanto fúteis, ainda que inevitáveis. A expansão violenta do germe responsável pelos revenantes fazia crer que este já existia anteriormente, possivelmente, por eras incontáveis, num isolamento completo, típico certamente de cenários naturais de acesso difícílimo, como cavernas, ilhas...ou, mais certamente, no caso, montanhas.

Vasculhávamos,pois, mapas dos Cárpatos e examinávamos com tenaz concentração as paisagens correspondentes a nossos pés ...buscamos os locais e acidentes que *não* se encontravam nos velhos registros...e que talvez descobertos ou invadidos desastrosamente naqueles anos fatídicos do início do século XVIII, liberando a monstruosa moléstia de seu solitário cativeiro.

Fizemos uma única descoberta de nota. Tratava-se de uma aldeola sem nome,humilde, composta de poucos casebres de pastores, enfiada num vale também desconhecido. Decidimos pousar o dirigível e examinar de perto o local, claramente abandonado sob o escrutínio de nossas lunetas telescópicas. A incursão seria feita a luz do dia; mesmo que a localidade parecesse, já à distância, eternamente imersa nas sombras dos montes que a cercavam, é fato que os "revenantes" são criaturas notívagas, via de regra letárgicos, senão inteiramente inertes nas horas de sol.

Ainda assim, o captião Burke e seus homens não pretendiam correr riscos de qualquer espécie; apesar de meus protestos - apenas formais, devo dizer, pois entendia perfeitamente a atitude daqueles bravos homens, ainda que lamentasse as possíveis consequências de suas ações -, o comandante decidiu lançar sobre o vale algumas de suas terríveis bombas incendiárias,destruindo,desafortunadamente, qualquer espécime revenante em exposição, mas impedindo, assim,qualquer ataque furtivo das criaturas, se alguma houvesse nas redondezas.

Assim foi feito. Nossa comitiva - fortemente armada - alcançou o anel de ruínas da aldeola quando as chamas infernais haviam esgotado toda matéria combustível, deixando apenas fumaça e muros de pedras enegrecidos pelas cinzas. Certamente, não havia muito a ser visto; ainda assim, examinamos com cuidado cada canto do vilarejo.
Suponho que nossos procedimentos possam ser melhorados; que nossa "margem de segurança" é ainda muito limitada, que acidentes como o que sobreveio logo a seguir possam ser de fato sumariamente evitados . Não posso afirmá-lo com certeza, porém.  Sei apenas quê, após examinarmos por mais de uma vez todas as casas, afastei-me um pouco de nosso grupo,seguro de nosso isolamento, para aliviar-me ao lado de uma árvore solitária e morta pelo fogo,enorme toco de lenha gasto e negro, então. Apoie-me com uma mão em seu tronco agora frio buscando equilibrar-me enquanto cumpria as necessidades da natureza...quando uma porção inteira desse tronco desdobrou-se como uma pilha de lenha em forma de gente e agarrou com uma força férrea meu braço estendido.

O revenante havia se camuflado perfeitamente,imóvel,de encontro à árvore queimada; pois sua pele e carne, o que restava, pouco, tinham o mesmíssimo aspecto carbonizado da madeira. Não tinha mais roupas, não tinha mais rosto,orelhas,nariz,olhos haviam sumido no incêndio...mas naquela boca desmesuradamente aberta... os dentes permaneciam intactos e brilhantes em sua brancura de pérola.
Meus companheiros responderam mais do que prontamente a meus gritos por socorro e,em meros instantes, fui afastado de meu agressor, já atirado ao chão e,antes que eu pudesse intervir - aturdido como estava, o que era compreensível - já se esfacelava por inteiro sob os golpes incessantes e impiedosos. Certamente, seria proveitoso o estudo daquele corpo,ainda espantosamente ativo após sofrer as inclemências do fogo. No entanto, pode-se dizer que a perda deste espécime foi compensada pela aquisição de um outro, talvez, mais precioso.

Eu e meus assistentes conseguimos convencer o capitão Burke e seus homens, visivelmente nervosos, ainda que eu não esteja certo se com justa razão, a me pouparem de uma morte precoce. A perspectiva de me manter em cativeiro até que minha infeliz condição se deteriore de vez e minha "transformação", por assim dizer, se efetue, alarmou-os sobremaneira. Aceitaram nossas condições apenas após promessas reiteradas de acréscimo a seus soldos e de garantias de que eu não escaparia da cela em que se tornou minha cabine privativa,a bordo da Vitória I.
Aqui me encontro, portanto. Cessei meu registro contínuo das dores, da febre e da náusea que me acometem e decidi redigir essas anotações finais, como um epílogo e sumário deste relatório, pois acredito que em poucas horas não terei forças sequer para erguer esta pena. Se o capitão Burke se mantiver fiel a sua palavra, serei conduzido de volta à Inglaterra. Mas, se a meus assistentes for permitido seguir a letra mesma de minhas últimas instruções, meu retorno ao lar não será para um enterro cristão. Afinal, nada mais apropriado que minha história termine onde ela verdadeiramente começou: em uma aula de anatomia.

Deus Salve a Rainha!
E que o Senhor tenha piedade de nossas pobres almas.

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