domingo, 15 de maio de 2011

[conto-curto] mata-borrão

MATA-BORRÃO

Agenor era como uma peça de mobília : sempre presente, confiável, funcional , já estava na firma quando alguns de seus colegas mais jovens ainda eram crianças de colo. menos respeitado do que calmamente tolerado, como um fato incontestável da vida: Agenor apenas *era*.
E discretamente satisfeito consigo mesmo e com aquela vida, parecia o Agenor: contente. Constante: os mesmos bigode, corte de cabelo (ah,isso é tintura, Seu Agenor?...), óculos de aros grossos , tudo oriundo da década de 70. Antediluviano e eterno Agenor.
O mesmo corte de camisa , fora de moda, imortal? E o crachá pregado no bolso da camisa: e duas canetas esferográficas com as tampas brotando sobre a borda do bolso.
Agenor colecionava esferográficas, o que era quase previsível. pouca gente sabia disso, quase ninguém se lembrava, Agenor parara de falar a respeito a anos, custara  a perceber que esse hobby em particular não interessava a mais ninguém , para sua frustração - Agenor não havia descoberto a internet, ainda. Logo desistira também de seu causo predileto para os momentos de conversa fiada, o de um médico que salvara amigo de crise alérgica fulminante, fazendo pequeno corte em seu esôfago travado,  enfiando o tubo de uma esferográfica no buraquinho, através do qual o sujeito poderia respirar. Pra vocês verem só, Agenor ousara acrescentar apenas numa ocasião, uma esferográfica pode ter mil e uma utilidades, não serve só pra prender coque dessa meninas,uai! É, Agenor, suspirara ,indulgente, um colega: caneta esferográfica também serve pra escrever,né?
E o colega se afastara, indo tratar da própria vida, deixando Agenor boquiaberto com o comentário: como se tivesse recebido uma revelação.
Agenor poderia escrever ensaios sobre sua filosofia esferográfica. Deveria tê-lo feito, de fato,e não apenas guardado tudo pra si: como o sem fim de gavetas cultivadas na maioria dos cômodos de seu ancião apartamento de solteiro - uma gaveta inteira em sua mesa na repartição, também - todas cheias de exemplares de cor e idade variados de canetas esferográficas.
Agenor vaticinava,enfim: que num mundo inconstante como o nosso, a caneta esferográfica era um símbolo vivo do que há de mais constante,imutável. *Porque* ela é um objeto estupidamente descartável: e,no entanto, a maioria das pessoas esquece que, como as canetas-tinteiro de outrora, uma esferográfica não precisa ser jogada fora quando acaba a tinta: basta trocar a carga, sabe.
Ninguém poderia imaginar que o Agenor trazia as mesmas duas canetas esferográficas no bolso da camisa há décadas.
nada parecia mudar na vida de Agenor,enfim, mas na vida da repartição. o único momento na memória viva de qualquer um em que Seu Agenor perdeu a compostura, quando perdeu sua gentil impassibilidade:quando os rumores sobre o fechamento iminente da repartição começaram a circular na hora do café.
de uma vez só, numa explosão: os colegas observando inquietos o Agenor tenso distraído distante suando aos cântaros mesmo sob a força do velho ventilador...até que alguém um cado alarmado finalmente se aventurou a chamar sua atenção - educadamente - para a mancha vermelha que se alastrara por todo o peito da camisa.uma das canetas estourara em seu bolso, é claro. Agenor mal registrou o aviso do colega, nem fez nada a respeito; de fato, permaneceu inteiramente mudo e estático até o fim do expediente.
Seu rendimento - até então,constante -caiu sensivelmente nas semanas seguintes. Cada vez mais distante, apático - parecia ter envelhecido de uma vez, também, bigode e cabelos embranquecendo a olhos vistos de um dia para o outro. pobre seu agenor, era só o que conseguiam dizer os colegas.
No dia seguinte ao anúncio oficial do fechamento da repartição, Agenor foi pego dentro de um armário do almoxarifado com uma das jovens secretárias da repartição. a garota ainda estava viva, mas já num estado de coma irreversível. Agenor havia enfiado um tubo oco de esferográfica em um de seus ouvidos.quando o arrastaram para fora do armário, estava com a gola da camisa e a ponta do nariz e o bigode e a boca sujos de sangue; nunca mais disse algo coerente na vida, nunca conseguiram lhe arrancar uma explicação para tudo aquilo.
toda a coleção de canetas esferográficas do Agenor foi parar no lixo.houve quem estranhasse aquela mania e aquela tranqueira toda,é claro; mas aquilo tudo não valeu mais do que um dar de ombros e ninguém se deu ao trabalho de examinar o conteúdo escuro daquelas centenas de tubinhos descartáveis.

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