terça-feira, 15 de novembro de 2011

[conto] Os sapatinhos vermelhos

[escrito para o concurso de Novembro/2011 da comunorkútica CONTOS FANTÁSTICOS - tema: "Andarilhos"]

Clyde segurava o ritmo  : o rugido da respiração, o baticum no peito, os pés mal tocando o chão. Sem parar, e constante: Clyde mantinha o mesmo ritmo por todos os anos em que durava essa sua maratona particular.
 

Não que tivesse uma noção exata da passagem do tempo, os olhos sempre na pista, e na linha do horizonte. 
O resto do mundo existia nas bordas , comprimido em sua visão periférica: a moldura inconstante do mundo. Tudo mudava, parecia, menos Clyde . Mas ele sempre sabia encontrar seu caminho: sempre a frente, sem parar.
 
Pois isso era o que importava: manter o ritmo, nunca parar.

, cruzando o mundo e o tempo em linha reta: mas o mundo girava, mudando de lugar. Buscando sua própria velocidade de escape:
 
...Clyde vara a curva preguiçosa da auto-estrada; sai do asfalto negro e fumegante, pisa com menor força, maior cuidado – compensar, e manter o ritmo – pela areia do deserto que ladeia a estrada. Sobe uma ravina em saltos curtos – inspira e expele o ar com mais força: compensando, compensando – desliza numa nuvem de poeira do outro lado, e dispara pela imensidão do deserto.
 
A planura ondulante de calor de repente rasga-se num negrume sem dimensão: Clyde pisa com mais força, respira com mais sofreguidão, toma longo impulso – chegando à beira do cânino: ele salta
 
(catapultando-se: voa, pernas e braços arqueados, peito a frente, sufocando-se, intoxicando-se com a força dos ventos)
 
, pousa leve mas firme do outro lado: e continua.




 
Um atleta precisa de um agente tanto quanto precisa de um treinador: esse era o mantra da época. E um atleta não é nada sem o patrocínador certo, sussurrava em seu ouvido o agente, enquanto Clyde era massageado depois de mais uma sessão diária de treinamento (oh, e a missão do agente também era essa: massagear o ego do cliente, inflar sua auto-estima,  inflacionar seu valor de mercado).

O patrocinador era uma marca de produtos esportivos em ascenção, assim como o próprio Clyde era uma estrela em ascenção do atletismo mundial: "um casamento feito no céu, Cly-my-guy”, dizia o agente.

, que era um tipinho incômodo e pegajoso: mas o executivo da empresa,a que Clyde fora apresentado era pior, muito pior. Ele parecia nunca piscar. A pele tinha uma qualidade artificial, parecia couro. Sempre sorrindo; e emanando um cheiro de colônia enjoativo - Clyde demorou a perceber porque aquele cheiro o incomodava tanto : o sujeito cheirava como um agente funerário … não: cheirava como uma agência funerária, ponto final.

O executivo falou e falou sem dizer nada...a filosofia da tal empresa, a Kiné...seu “moto", o slogan definidor mas ainda não definido, qual era a opinião de Clyde, qual ele preferia: “Puro movimento”, ou “Sempre na frente”, ou “Nunca pare”...?

Clyde não se lembrava mais da resposta, apenas suava durante a reunião e tentava segurar sua náusea. Depois de assinar seu contrato – e apertar a mão viscosa daquele sujeito – correu para o quarto no hotel cinco estrelas que a companhia estava pagando e tomou um longo e desesperado banho.



Clyde nunca olhava para os próprios pés: ainda que mal os sentisse, mal sentisse o choque das plantas dos pés contra o chão...esse toque mínimo, essa quase carícia. Quase voando, correndo no ar.
 
O logotipo da Kiné era um relâmpago estilizado, quase um “s” duro. Brancos, quase prateados de tão intensos contra o vermelho, dois desses  ladeavam cada pé de tênis, nos calcanhares.

Clyde nunca tirava aquele par de tênis. Fazia parte do contrato: a obrigação de usá-los em público. Onde quer que fosse.

Alcançando e cruzando a próxima cidade:

Saltando os veículos no trânsito modorrento da tardinha ; correndo sobre a pavimentação de capôs do fluxo estagnado do tráfego. Saltando as casinhas suburbanas para não ter que se desviar a toda hora; correndo pelas paredes nos túneis que zuninam com os veículos em disparada ,

sempre furando seu atalho-tangente, dessa vez, dando de cara com um arranhacéu no centro financeiro da cidade:  correndo pela parede envidraçada acima até o topo, saltando dali até a torre mais próxima, e depois a seguinte...


E Clyde nunca parou, depois de assinar o contrato, depois daquele aperto de mãos: sua carreira decolou, e ele nunca olhou para trás e nunca mais teve coragem de olhar para os próprios pés.

“O homem-raio”!“Mais rápido do que a própria sombra”!: todas as manchetes exageradas, que, Clyde estava certo, eram obra de nenhum jornalista entusiasmado mas do vasto departamento de relações públicas da Kiné.

Que crescia mais que a fama de seu garoto-propaganda. Quase ubíqua: era a coca-cola do novo milênio, sem dúvida alguma.

Clyde e a Kiné sempre andariam juntos, correriam juntos apartir de então. Casados, Clyde lembraria sem qualquer pingo de humor. Em eterna lua-de-mel: ele passava mais tempo  gravando tele-comerciais e participando de entrevistas coletivas do que nas pistas de corrida.

E Clyde só queria correr, correr,correr. Sempre quis; era só isso, só isso o que importava.
 

Se porventura corresse em direção ao sol e por um momento só se virasse ( o que nunca fazia, como não fazia mais olhar para os próprios pés), Clyde não veria sombra nenhuma seguindo-o; mas não precisava, não tinha que olhar para trás para descobrir que perdera a própria sombra há muito, muito tempo .

O mundo era pouco mais que um borrão agora... por mais que mantivesse o próprio ritmo, Clyde intuia que sua velocidade somava-se à terra, à do sistema solar , da gálaxia... engrenagens ou, antes, roldanas num universo relativístico: unidas por uma só cadeia.

Atravessando edifícios pessoas veículos florestas montanhas como se fossem a neblina densa numa manhã friorenta:

Correndo pela superfície de um oceano, depois outro, depois o seguinte, pés chapinhando nas poças d´água da mesma manhã úmida e gelada.


Mesmo tendo se tornado um gigante corporativo, a Kiné não era intocável; ela tinha seus próprios pés de barro, ela podia cair. Se caisse, Clyde cairia junto, ciciou-lhe aquele mesmo executivo, nem uma sombra de sorriso no rosto, e expelindo como balas um hálito quente cheirando a enxaguante bucal e carniça.

As acusações começaram a pipocar por todo mundo: sobre os maus-tratos sofridos pelos empregados das fábricas da Kiné em países do terceiro mundo. Clyde fora convocado para, como bom garoto propaganda, ser o cicerone da imprensa em um tour pelas tais fábricas, assegurando o mundo das boas intenções da Kiné: encarnadas em sua própria pessoa – Clyde , olhe pra cá! Clyde , sorria para as câmeras! Clyde, é verdade que você toma anabolisantes? Clyde, você vai mesmo se casar com a  modelo...

Em algum lugar do sudeste asiático:

No pátio de uma das fábricas da Kiné, Clyde pronunciou um curto mas comovido discurso para um batalhão de fotógrafos e jornalistas. Lembrou a todos de sua origem humilde; lembrou-lhes que só pudera escapar de uma juventude de crimes e drogas por causa do atletismo; assegurou ao mundo que a chance que ele mesmo tivera, a Kiné estava assegurando a todos os seus empregados e aos filhos de seus empregados por todo o terceiro mundo...

Mas é verdade que você vai se converter ao islamismo, Clyde? É verdade que você vai fazer um filme e gravar um álbum de rap, Clyde? É verdade que você teve um filho ilegítimo com...

A empresa ficou muito satisfeita com sua perfomance... os assessores não gostaram tanto quanto Clyde insistiu quase ao ponto de ameaças físicas para visitar as dependências da fábrica no dia seguinte, quando a imprensa estivesse bem longe.

A visita foi surpresa, segundo exigência sua. Não houve tempo para mascarar a sujeira, o entulho, o calor, o abafamento. Quase todos os empregados eram crianças.

: que haviam parado o trabalho com ordens ríspidas dos capatazes, olhavam assustadas para os visitantes estrangeiros. Clyde, este não sabia para onde olhar, não para aquela multidão de rostinhos espantados.

Sentiu um puxão de leve na barra da calça; virou-se para ver um menino de rosto sujo e sorriso imenso que o encarava, embevecido. Olhou feroz para um assessor que fez menção de afastar a criança mas que logo se retraiu como se tivesse levado um chicotada.

Ajoelhando-se, tentando sorrir com naturalidade: afagando o cabelo do menino, que lhe extendeu um pedaço amarelado de papel.

Meia dúzia de canetas lhe foram oferecidas pelos assessores, Clyde catou uma ao acaso, autografou o papel, devolveu-o ao garoto que comprimiu a folhinha contra o peito e lhe disse algo, os olhos marejados.

Um funcionário da fábrica traduziu: O senhor é meu herói.

Ao voltar para o hotel, Clyde conseguiu se desvencilhar de sua trupe, começou a andar a esmo pelas ruas imundas da cidade, foi acelerando o passo, depois começou a correr e nunca mais parou.


, mais rápido, cada vez mais, circulando de novo e de novo e de novo a cintura equatorial do mundo:
 
bastou então um salto, apenas, para que varasse o teto denso de nuvens,
 
chispasse o negrume denso do vácuo,

pousasse como uma pluma na praia prateada da Lua,

sem parar, jamais: sem precisar tomar fôlego, apenas tomando impulso e saltando além.

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