Baseado em conceitos originais de Rubem Cabral, com acréscimos de Felipe Falconeri.]
A primeira vez em que eu morri não foi tão ruim assim. Na confusão do campo de batalha, não vi de onde veio o golpe fatal, não sei o que me acertou, se foi uma bala, um estilhaço... Mal registrei a dor e então tudo sumiu. Eu tenho que dizer, a coisa toda foi um tremendo alívio.
Agora, quando as luzes se acenderam novamente... Primeiro, havia o caos do combate; depois, o generoso Nada; daí então, a dor, e a cara suja, estupidamente prestativa e bem-intencionada do Tenente Gomez, o médico da companhia, cobrindo todo o meu campo de visão.
“Calma, soldado, você está bem agora, você vai ficar melhor, isso, calma...”
E meu impulso inicial era enfiar a baioneta na testa do sujeito. Mas eu não tinha forças para isso; meu primeiro gesto como alguém que acaba de voltar da morte foi abraçar minhas pernas e chorar como uma criancinha.
Deve ser assim que os recém-nascidos se sentem.
***
“Quando você ler essa mensagem, eu já estarei morto”. Rá,rá,rá.
A companhia está aquartelada nas ruínas de uma mesquita. Antes da Guerra, havia um vilarejo aqui. Hoje, só restam as fundações; em pé, só esse templo morto. Lá fora, sob o sol mortiço, uma pequena esquadrilha de abutres voa em círculos, esperando que os humanos saiam da toca.
Não podemos escrever e enviar cartas para casa, muito menos recebê-las. Nenhum sinal entra ou sai da Zona de Exclusão. E as imagens que os satélites espiões conseguem obter através das nuvens negras de fumaça, fuligem e pó que cobrem toda a Península Arábica e redondezas são, no mínimo, ambíguas. Há algo no centro da Zona, imenso, vazio, um buraco sem fim. Um Abismo. E alguém tem que ir lá para ver esse gigantesco Nada. Nós.
O cabo Mayo parou de berrar, afinal. Nas cercanias do vilarejo, ele pisou numa espécie de cobra...não: ao contrário da esquadrilha de abutres, a criatura era completamente robótica, mais uma centopéia metálica, mas
enorme, metro e meio de comprimento, parecia. Saltou como uma mola da areia, enroscou-se na perna do cabo Mayo e começou a eletrocutá-lo.
Depois do encontro com o enxame de abelhas com veneno neurotóxico há uma semana, o cabo Mayo desenvolveu uma espécie de sistema nervoso central sobressalente, ou algo que o valha. Mesmo com os espamos violentos que o fizeram morder e cortar fora a própria língua, ele conseguiu sacar sua baioneta e cortar a centopéia-robô ao meio, antes que qualquer um de nós pudesse vir em seu socorro.
A “centopéia” era composta , de fato, por uma série de robôs aracnóides encadeados. Ferida, a criatura se segmentou, cada pedaço correndo numa direção diferente para se esconder. Mas uma ou duas unidades permaneceram presas à perna de Mayo e, como que para proteger suas irmãs, cometeram suicído. Começaram a brilhar e a arder como térmita, com calor suficiente para derreter armadura e tecido e carne e ossos e separar a perna de Mayo de seu corpo.
Nós chegamos aqui à pé. Se alguém da companhia algum dia sair do buraco negro que é a Zona de Exclusão, será à pé. Sem reforços, sem cobertura, sem garantia alguma. Ainda assim, alguém tinha que entrar nesse buraco. Alguém tem que tentar entender o que está acontecendo aqui. E sobreviver e voltar para casa para contar o que viu.
Até parece.
Enfim. Mayo parou com seus ganidos sem língua. Encostado numa pilastra, assistido por Gomez, gira a cabeça de um lado para o outro, olhos fechados, como em delírio febril. E, como um broto de árvore, uma perna nova nova começa a crescer no lugar da antiga. Seguindo os procedimentos de segurança, o sargento Barnaby cuidou para que o membro decepado fosse queimado até sobrarem apenas cinzas, e as cinzas forem guardadas num recipiente hermeticamente selado, e o recipiente foi enterrado o mais fundo possível.
Escrevo essas notas numa tabuleta de cerâmica, com um lápis com ponta de diamante. Sistemas eletrônicos não são confiáveis no interior da Zona de Exclusão, ou em suas bordas. De fato, a Rede Mundial de Computadores foi a primeira baixa da Guerra. O conflito provou que qualquer sistema pode ser hackeado. Mesmo nossos genes; mesmo a mente humana.
Exemplo anedótico : a comunicação por rádio nas imediações da Zona é terminantemente proibida desde que começaram a circular os rumores sobre o vírus “zohar”. Esse vírus não é biológico ou de software, é uma nova espécie, um vírus semiótico.
O zohar é uma canção, um jingle ou um mantra, ninguém sabe direito porque, quem descobre, se danou. Ele é transmitido por canais de áudio: quem o ouve, fica com o mantra/jingle na cabeça, não consegue pensar em
mais nada. Simplesmente enlouquece. Comete suicídio ou começa uma matança que só para quando a vítima do zohar é morta.
O problema é que dita vítima balbucia grita canta chora o zohar enquanto estiver viva. E, quem a ouve, também é infectado. Assim , a ordem nas bordas da Zona de Exclusão é : qualquer indivíduo com aparência suspeita que for visto falando sozinho, deve ser abatido no ato. Sem exceções.
Ninguém sabe quem criou o zohar. O mais certo, porém, é que ninguém tenha realmente criado essa nova espécie, o vírus semiótico. O zohar é simplesmente um nativo da Zona.
Dizem que a Guerra já acabou. Para o mundo lá fora, a Guerra realmente já terminou faz tempo, tudo bem. Mas ninguém conseguiu explicar isso para quem ficou para trás. Para os combatentes da Zona de Exclusão. Aqui, a Guerra é o estado natural das coisas.
O sarjento Barnaby está planejando uma pequena missão para rastrear , ocupar ou destruir o ninho dos abutres, que é também seu quartel general. Só assim conseguiremos tirar os bichos de nossa cola, impedir que nos bombardeiem novamente com aquela caca que queima como napalm. Ou que atraiam outras bestas e combatentes no território para nossa posição. E depois se banqueteiem com os restos da briga.
Fomos instruídos a registrar nossas impressões da Zona, ainda que apenas eu mantenha um diário de guerra , parece. Eis minhas impressões até o momento, então:
Tenho a plena convicção de que , se o mundo tiver sorte, nenhum de nós aqui deixará a Zona de Exclusão.
E que ninguém mais lerá esse diário além de mim.
Que seja. De qualquer forma, só paro de escrever quando arrancarem o lápis das minhas mãos mortas e frias. Rá,rá,rá.
***
A criatura mais humana no campo de treinamento era o Capitão Simão. E ele seria a mascote do campo se não fosse um veterano condecorado da Guerra. Foi nosso melhor instrutor.
Nenhum de nós era novato; somos quase todo desertores, de fato, a maioria, fugida dos campos de batalha, quase todos já temos alguma experiência de combate. Acontece que para participar da Operação Cachorro-Louco, nós teríamos que nos transformar em algo diferente. Nós nos transformamos em algo diferente. Tivemos que reaprender a respirar, a comer, a defecar, a suar, a sentir dor, a pensar. Foi como uma segunda
puberdade. Ou como a senilidade, não sei, só sei que foi terrível. Continua sendo. Exceto que nós fingimos que estamos adaptados.
Simão é um chimpanzé. Criado em cativeiro, gestado em laboratório. No início da Guerra, a pressão social e política para o uso de tropas robotizadas ou apenas não-humanas era imensa...sumiu com o tempo...daí os programa de clonagem de espécies da fauna em perigo de extinção foram adaptados para fins militares. Com sucesso, aliás. Os bichos só não ganharam a guerra para a gente porque todos os burocratas e os oficiais de alto escalão ainda eram humanos.
O capitão Simão deve ter o QI de metade da tropa...somada. Mas , fora de seu “uniforme”, continua parecendo um chimpanzé com o traseiro de fora . Ele tem o cérebro mas não a aparelhagem natural para se comunicar verbalmente; expressa-se através de uma linguagem elaborada de gestos, complementada com grunhidos, berros, chutes, mordidas, empurrões, arranhões. Ele é bem eloquente.
O cabo Schmit não é uma pessoa particularmente má, para um soldado. É apenas um junkie, só isso, inofensivo, descomplicado, de trato fácil. Por alguma razão, ele detesta animais. Suspeito que isso tenha algo a ver com uma bad trip ou outra.
Além de ser uma mula, Schmit não tolerava o Capitão Simão. Numa bela manhã de exercício, enfezou-se de vez, explodiu com o instrutor que saltava a seu redor , fedendo, urrando e empurrando-o pela pista de treinamento afora. Schmit estourou e desferiu um pontapé futebolístico no chimpanzé que tinha quase metade de sua altura.
Tentou. Simão simplesmente segurou o pé do soldado, firme. Prendeu-o ali, naquela posição ridícula. Poderia ter finalizado o golpe de um punhado de maneiras diferentes. Torcido o tornozelo do soldado; aplicado uma
rasteira no pé-de-apoio, abrindo o Schmit como se fosse uma tesoura. E é claro que escolheu terminar a lição da forma mais direta, com um chute no saco, arreganhando os beiços imensos para revelar todos os dentes no que era, suponho, um baita sorriso de satisfação .
Ninguém desrespeita o Capitão Simão.
Especialmente depois de vê-lo à caratér, em seu uniforme. Os animais têm o instinto e a garra, mas ninguém vai para a Guerra nú. Simão usava um exoesqueleto personalizado em boa parte dos exercícios. Por alguma razão, e acredito que seja por uma espécie de complexo de inferioridade símio, o traje robótico tinha a forma de um gorila de três metros de altura.
“Por que vocês estão enfiados nesse campo de treinamento de merda, macacada?”, o Simão nos inquiria em outra manhã, perfilados no pátio, tensos porque ele caminhava de um lado para o outro a nossa frente, vestindo o “uniforme”, é claro. Fazendo o chão tremer ligeiramente a cada passada, soltando baforadas de vapor d'água regulares por orifícios nas costas metálicas.
Simão é mais do que ambidestro. Ele podia pilotar o traje com as mãos...patas anteriores?...e com os pés, suponho. De qualquer forma, sempre sobrava alguma pata com que ele digitava agilmente mensagens que eram transmitidas a viva voz pelos alto-falantes do exoesqueleto, no mesmo tom anasalado e sintético, supostamente neutro, mas, de fato, ligeiramente sarcástico.
Lembro-me de que, antes da Guerra, algumas nações da Federação Pan-Africana usavam chimpanzés de laboratório como o Simão para serviços de telemarketing e programação, por sua destreza, imagino. Quando eu era criança, adorava ver aquelas imagens dos macaquinhos bonitinhos enfileirados naquelas mesas de escritório sem fim, debruçados sobre os monitores, fones nos ouvidos, óculos de interface r.v.nas caras, teclando,teclando,teclando sem parar...
“E então? Ninguém?”
A noção que eu tinha de “macaquinhos bonitinhos” morreu de vez quando o Simão quebrou seu passo, aproximou-se de mim num só galope, debruçou-se até que o focinho do exoesqueleto ficasse a três centímetros da minha cara. Bufando cada vez mais depressa.
“E você, Ferreira? Alguma ideia? Você sabe dizer porque vocês, 'soldados', estão enfiados nesse buraco com um macaco que faz vocês comerem merda todo dia, hein, hein?!”
Não , senhor, eu não sei dizer.
E não soube, não consegui dizer nada. Abri a boca, mas nenhuma ideia besta me ocorria. Só pude engolir em seco; que foi quando o Simão extendeu uma mão mecânica gigantesca... pata anterior?... em minha direção, fazendo o mundo inteiro sumir em sua sombra.
Não sei direito o que aconteceu depois. Já estive num acidente de automóvel, foi mais ou menos daquele jeito. Só sei o que me contaram , enquanto eu permaneci encamado por dois dias, todo extendido, espichado feito o homem universal de DaVinci, para que os ossos e músculos se regenerassem do modo certo.
Disseram que o Simão me catou do chão como se eu fosse uma casca de banana; que me embolou como se eu fosse uma folha de papel; que me lançou além da cerca do pátio, bem dentro de uma caçamba de lixo, como se eu fosse uma bola de basquete.
E depois se voltou para o resto da tropa, apavorada, e disse, mais calmo, gentil até:
“Vocês estão aqui porque são como eu. Eu não sou mais um chimpanzé, nunca mais voltarei a ser um chimpanzé. E vocês não são mais humanos, nunca mais voltarão a ser e terão que aprender a viver com isso. Fim da lição.”
***
Há uma boa razão pela qual não escrevo essas notas numa caderneta de papel, usando um lápis de madeira.
O cabo Hung chama nossa expedição de “safari”. Ele parece não se importar muito com o caos no interior da Zona de Exclusão. Hung não é um desertor; quando foi “convocado” para a Operação Cachorro-Louco, ele aguardava julgamento por estupro.
Ninguém aqui tem a ficha limpa, com a exceção do Sargento Barnaby, mas ele é louco. Há um ou outro doido viciado em combate na tropa, mas o Barnaby é o verdadeiro animal: ele foi voluntário para esse trabalho. Acho que ele tem vontade de ser herói de guerra. Eu odeio heróis de guerra. Por isso estou aqui.
Também não gosto de santos; o Tenente Gomez é o único que pretende ter uma consciência moral por estas bandas, talvez sinta-se obrigado a isso por ser médico. Desde que faça os remendos direito, por mim, ele pode ser até satanista.
Falando no diabo... O papel de bússola espiritual do time caberia ao Tenente Hudson, nosso capelão ecunêmico, mas ele não tem sido de muita ajuda desde que enfiou o cano do fuzil na boca e puxou o gatilho. O que não lhe serviu de grande coisa. Tivemos que amarrá-lo e mantê-lo amordaçado por um dia inteiro : depois do tiro, agia como um débil mental histérico ou, bem, como uma galinha sem cabeça … chapada de bolinha... até que sua massa cinzenta se regenerasse por completo. E , o pior de tudo, teve que aguentar um sermão do Barnaby.
Mas , ainda que sejamos todos avis rara, não somos as verdadeiras atrações desse safari, é claro.
Há quem diga que a Zona foi a principal razão para o fim da Guerra. Agora, deixe eu lhe contar um segredo : a Guerra foi apenas um vasto campo de testes para as guerras do futuro. Os motivos políticos e econômicos de praxe foram meras formalidades : a Guerra foi de fato um monstruoso laboratório para novos sistemas de combate e de vigilância, só isso. E o Oriente Médio não foi o único teatro de operações, é claro. Mas foi aqui que o experimento da Guerra fracassou de verdade.
Hung encontrou um novo brinquedo esta manhã. O sargento Barnaby estava ocupando demais para chamar sua atenção, tentando descobrir onde diabos nós estávamos plantados, os marcos humanos e naturais da região mutilados pela Guerra, a bússola nem sempre confiável, o sol escondido por um céu nebuloso de incêndio. E Gomez ficava observando o Hung à distância, sem saber se intervinha ou não, se tinha razão para tanto.
Hung encontrou um peixe caído no chão, ainda vivo, se debatendo. É, um peixe vivo, à quilômetros de qualquer curso d'água. O'Folley fez uma piada sobre um velho desenho animado na tevê , mas ninguém entendeu: o peixe estava todo coberto pelo que parecia ser uma capa de ovos, como os de sapos, na região da cabeça...mas , se observados de perto , via-se que os “ovos” eram na verdade uma série sem fim de pequenos e arregalados olhos sem pálpebras .
Coisas assim começaram a aparecer mundo afora desde a Guerra. Monstros marinhos, naufragados em praias distantes. Impossíveis, inclassificáveis. Vindos da Zona de Exclusão. Não eram meras crias de laboratório, armas biológicas ambulantes como tantas outras lançadas e testadas durante a Guerra. Dissecadas, essas quimeras revelavam uma assinatura única, uma fonte precisa.
Estimulado pela roda que se formava a seu redor, todos nós tentando escapar do tédio da manhã, Hung pregou o peixe no solo pedregoso com a baioneta. O bicho continuava se debatendo, cada vez com maior vigor.
Uma das premissas do experimento em larga escala que foi a Guerra é a das “armas inteligentes”. Premissa furada: não há “arma inteligente”, como não há “tecnologia inteligente”, não importa quantas vezes uma i.a. bata o teste de turing … aliás, i.a.s foram usadas durante a Guerra para desenvolver testes de turing cada vez mais sofisticados … para tentar distinguir usuários humanos de i.a.s miméticas, viróticas... sem sucesso: isso apenas catalizou o surgimento de novas gerações de i.a.s cada vez mais versáteis e perfomáticas. Hoje em dia, ninguém mais é capaz de diferenciar a própria mãe de uma i.a.-spam.
Quanto mais eficiente é um pedaço de tecnologia, mais burro ele é . E não há nada mais mais burro e mais eficiente do que uma colônia de nanobôs.
A novidade do peixe mutante estava sumindo, Hung estava perdendo seu público. Irritado, olhava ao redor, procurando novas ferramentas de tortura, qualquer coisa que não chamasse a atenção do sargento Barnaby. Então, um maçarico aceso apareceu em sua mão, como se fosse um baseado passeando numa rodinha de amigos.
Não há consenso sobre o porquê ou o como do evento que redefiniu a Guerra, o que o Alto Comando apelidou de “Fusão” … não que esse nome explique alguma coisa, realmente. Há quem ainda insista que a coisa toda foi um acidente. Alguém que tenta desesperadamente manter a ilusão de civilidade da Guerra, acredito.
A “Fusão” começou com o uso de uma colônia de nanobôs como arma biológica. Um sistema perfeito em toda a sua estupidez. Essa cepa de nanobôs estava programada para se reproduzir indefinidamente usando o segundo melhor combustível que a Natureza foi capaz de criar: matéria orgânica. O meio de dispersão inicial deve ter sido um aerosol...chuva teria sido o ideal, ainda que fazer chover numa das regiões mais secas do mundo talvez fosse problemático mesmo para os gênios em ação durante a Guerra. Atingida uma certa massa crítica, a colônia passaria de uma escala nanoscópica a uma microscópica, agindo então como germes convencionais. Há quem fale numa fase macroscópica da colônia, menções sussurradas...no mesmo tom medroso e elusivo dos supersticiosos incuráveis ... a uma fase “bolha assassina” de desenvolvimento.
Pessoalmente, acho difícil levar a sério uma arma biológica com esse nome. “Bolha assassina”...
Não importando qual fosse sua configuração final, micro ou macroscópica, a colônia de nanobôs seria mais eficiente se dispussese de uma boa massa crítica de combustível/matéria prima. É tido como certo que o foco inicial de dispersão foi um grande centro populacional. Há bons motivos para se crer que o alvo foi Meca: no pico da época de peregrinações.
O peixe pára de se debater de uma vez quando suas escamas chiam sob a chama . Hung afasta o maçarico, decepiconado, e então a criatura parece entrar em convulsão. Espasmódica: sacode-se com tanta força que parece se rasgar...não. Não são espinhas que brotam através de sua carne: são longas, escuras patas de aranha – quatro pares que se projetam do corpo empalado, agitam-se furiosamente no ar, lutando para fazer com o peixe se desvire.
Agora. Uma arma verdadeiramente inteligente teria se desativado, cumprida sua missão original. Uma arma biológica só presta se tiver um prazo de validade bem, bem definido. Sendo estupidamente inteligente, o que a colônia de nanobôs fez? Quando seu estoque de combustível e matéria-prima acabou, ela finalmente descobriu o melhor combustível que a Natureza já foi capaz de criar: matéria orgânica decomposta e comprimida por milhões de anos. Petróleo.
Por meses, a região foi assolada por tremores de terra intermitentes, e coberta pelo pó e detritos despejados na atmosfera em escalas associadas apenas a erupções vulcânicas e explosões nucleares. A observação direta era difícil e inconclusiva, mas, “bolha assassina” ou não, a colônia parecia estar submetendo a região , de uma só vez, a um processo erosivo que normalmente levaria milhões de anos. E então a demolição da península árabe parou. Também, de uma vez só.
Pegos de surpresa, o círculo ampliado, explodido , as armas apontadas para o peixe-aranha: não sabíamos se era maior o medo da criatura ou do sargento, que só agora notava a confusão e se aproximava levantando poeira, tão forte pisava no chão.
Mas, quando finalmente aceitou que não conseguiria se libertar sozinho, o peixe começou a gritar.
Os monstros marinhos, as quimeras, as aberrações migratórias que surgiram mundo afora, todas elas, mortas. Todas elas apresentando em nível microscópico, celular, traços fossilizados,cristalizados daquela colônia de nanobôs. Inertes. Dir-se-á mortos, mas sem razão aparente. Dormentes, talvez. Como que aguardando um sinal. Um chamado; vindo do interior da Zona de Exclusão. Do Abismo.
E é por isso que não uso mais lápis, papel. Aqui, tudo o que é biodegradável será degradado, cedo ou tarde. Mais cedo do que tarde. E não há nada mais fácil de ser processado do que matéria orgânica.
Quanto a nós, membros desse safari...Se a Guerra foi um protótipo da guerra futura, nós somos a versão beta. Somos os soldados do amanhã, rá, rá. Se a Zona de Exclusão tentar nos devorar, acabará tendo que nos cuspir de volta. Mesmo que nos mastigue bastante antes disso.
E o peixe continuou gritando. Barnaby tentou impor ordem àquela zona e entender que diabos estava acontecendo, mas logo teve que parar com seus berros furiosos: um vento uivante e ainda mais feroz que o sargento surgiu do nada, veio , chegou, cegou-nos com a poeira levantada, nos escorraçou para qualquer abrigo e buraco que pudéssemos descobrir. O que foi bom: porque logo começou a chover peixe.
A criatura mais humana no campo de treinamento era o Capitão Simão. E ele seria a mascote do campo se não fosse um veterano condecorado da Guerra. Foi nosso melhor instrutor.
Nenhum de nós era novato; somos quase todo desertores, de fato, a maioria, fugida dos campos de batalha, quase todos já temos alguma experiência de combate. Acontece que para participar da Operação Cachorro-Louco, nós teríamos que nos transformar em algo diferente. Nós nos transformamos em algo diferente. Tivemos que reaprender a respirar, a comer, a defecar, a suar, a sentir dor, a pensar. Foi como uma segunda
puberdade. Ou como a senilidade, não sei, só sei que foi terrível. Continua sendo. Exceto que nós fingimos que estamos adaptados.
Simão é um chimpanzé. Criado em cativeiro, gestado em laboratório. No início da Guerra, a pressão social e política para o uso de tropas robotizadas ou apenas não-humanas era imensa...sumiu com o tempo...daí os programa de clonagem de espécies da fauna em perigo de extinção foram adaptados para fins militares. Com sucesso, aliás. Os bichos só não ganharam a guerra para a gente porque todos os burocratas e os oficiais de alto escalão ainda eram humanos.
O capitão Simão deve ter o QI de metade da tropa...somada. Mas , fora de seu “uniforme”, continua parecendo um chimpanzé com o traseiro de fora . Ele tem o cérebro mas não a aparelhagem natural para se comunicar verbalmente; expressa-se através de uma linguagem elaborada de gestos, complementada com grunhidos, berros, chutes, mordidas, empurrões, arranhões. Ele é bem eloquente.
O cabo Schmit não é uma pessoa particularmente má, para um soldado. É apenas um junkie, só isso, inofensivo, descomplicado, de trato fácil. Por alguma razão, ele detesta animais. Suspeito que isso tenha algo a ver com uma bad trip ou outra.
Além de ser uma mula, Schmit não tolerava o Capitão Simão. Numa bela manhã de exercício, enfezou-se de vez, explodiu com o instrutor que saltava a seu redor , fedendo, urrando e empurrando-o pela pista de treinamento afora. Schmit estourou e desferiu um pontapé futebolístico no chimpanzé que tinha quase metade de sua altura.
Tentou. Simão simplesmente segurou o pé do soldado, firme. Prendeu-o ali, naquela posição ridícula. Poderia ter finalizado o golpe de um punhado de maneiras diferentes. Torcido o tornozelo do soldado; aplicado uma
rasteira no pé-de-apoio, abrindo o Schmit como se fosse uma tesoura. E é claro que escolheu terminar a lição da forma mais direta, com um chute no saco, arreganhando os beiços imensos para revelar todos os dentes no que era, suponho, um baita sorriso de satisfação .
Ninguém desrespeita o Capitão Simão.
Especialmente depois de vê-lo à caratér, em seu uniforme. Os animais têm o instinto e a garra, mas ninguém vai para a Guerra nú. Simão usava um exoesqueleto personalizado em boa parte dos exercícios. Por alguma razão, e acredito que seja por uma espécie de complexo de inferioridade símio, o traje robótico tinha a forma de um gorila de três metros de altura.
“Por que vocês estão enfiados nesse campo de treinamento de merda, macacada?”, o Simão nos inquiria em outra manhã, perfilados no pátio, tensos porque ele caminhava de um lado para o outro a nossa frente, vestindo o “uniforme”, é claro. Fazendo o chão tremer ligeiramente a cada passada, soltando baforadas de vapor d'água regulares por orifícios nas costas metálicas.
Simão é mais do que ambidestro. Ele podia pilotar o traje com as mãos...patas anteriores?...e com os pés, suponho. De qualquer forma, sempre sobrava alguma pata com que ele digitava agilmente mensagens que eram transmitidas a viva voz pelos alto-falantes do exoesqueleto, no mesmo tom anasalado e sintético, supostamente neutro, mas, de fato, ligeiramente sarcástico.
Lembro-me de que, antes da Guerra, algumas nações da Federação Pan-Africana usavam chimpanzés de laboratório como o Simão para serviços de telemarketing e programação, por sua destreza, imagino. Quando eu era criança, adorava ver aquelas imagens dos macaquinhos bonitinhos enfileirados naquelas mesas de escritório sem fim, debruçados sobre os monitores, fones nos ouvidos, óculos de interface r.v.nas caras, teclando,teclando,teclando sem parar...
“E então? Ninguém?”
A noção que eu tinha de “macaquinhos bonitinhos” morreu de vez quando o Simão quebrou seu passo, aproximou-se de mim num só galope, debruçou-se até que o focinho do exoesqueleto ficasse a três centímetros da minha cara. Bufando cada vez mais depressa.
“E você, Ferreira? Alguma ideia? Você sabe dizer porque vocês, 'soldados', estão enfiados nesse buraco com um macaco que faz vocês comerem merda todo dia, hein, hein?!”
Não , senhor, eu não sei dizer.
E não soube, não consegui dizer nada. Abri a boca, mas nenhuma ideia besta me ocorria. Só pude engolir em seco; que foi quando o Simão extendeu uma mão mecânica gigantesca... pata anterior?... em minha direção, fazendo o mundo inteiro sumir em sua sombra.
Não sei direito o que aconteceu depois. Já estive num acidente de automóvel, foi mais ou menos daquele jeito. Só sei o que me contaram , enquanto eu permaneci encamado por dois dias, todo extendido, espichado feito o homem universal de DaVinci, para que os ossos e músculos se regenerassem do modo certo.
Disseram que o Simão me catou do chão como se eu fosse uma casca de banana; que me embolou como se eu fosse uma folha de papel; que me lançou além da cerca do pátio, bem dentro de uma caçamba de lixo, como se eu fosse uma bola de basquete.
E depois se voltou para o resto da tropa, apavorada, e disse, mais calmo, gentil até:
“Vocês estão aqui porque são como eu. Eu não sou mais um chimpanzé, nunca mais voltarei a ser um chimpanzé. E vocês não são mais humanos, nunca mais voltarão a ser e terão que aprender a viver com isso. Fim da lição.”
***
Há uma boa razão pela qual não escrevo essas notas numa caderneta de papel, usando um lápis de madeira.
O cabo Hung chama nossa expedição de “safari”. Ele parece não se importar muito com o caos no interior da Zona de Exclusão. Hung não é um desertor; quando foi “convocado” para a Operação Cachorro-Louco, ele aguardava julgamento por estupro.
Ninguém aqui tem a ficha limpa, com a exceção do Sargento Barnaby, mas ele é louco. Há um ou outro doido viciado em combate na tropa, mas o Barnaby é o verdadeiro animal: ele foi voluntário para esse trabalho. Acho que ele tem vontade de ser herói de guerra. Eu odeio heróis de guerra. Por isso estou aqui.
Também não gosto de santos; o Tenente Gomez é o único que pretende ter uma consciência moral por estas bandas, talvez sinta-se obrigado a isso por ser médico. Desde que faça os remendos direito, por mim, ele pode ser até satanista.
Falando no diabo... O papel de bússola espiritual do time caberia ao Tenente Hudson, nosso capelão ecunêmico, mas ele não tem sido de muita ajuda desde que enfiou o cano do fuzil na boca e puxou o gatilho. O que não lhe serviu de grande coisa. Tivemos que amarrá-lo e mantê-lo amordaçado por um dia inteiro : depois do tiro, agia como um débil mental histérico ou, bem, como uma galinha sem cabeça … chapada de bolinha... até que sua massa cinzenta se regenerasse por completo. E , o pior de tudo, teve que aguentar um sermão do Barnaby.
Mas , ainda que sejamos todos avis rara, não somos as verdadeiras atrações desse safari, é claro.
Há quem diga que a Zona foi a principal razão para o fim da Guerra. Agora, deixe eu lhe contar um segredo : a Guerra foi apenas um vasto campo de testes para as guerras do futuro. Os motivos políticos e econômicos de praxe foram meras formalidades : a Guerra foi de fato um monstruoso laboratório para novos sistemas de combate e de vigilância, só isso. E o Oriente Médio não foi o único teatro de operações, é claro. Mas foi aqui que o experimento da Guerra fracassou de verdade.
Hung encontrou um novo brinquedo esta manhã. O sargento Barnaby estava ocupando demais para chamar sua atenção, tentando descobrir onde diabos nós estávamos plantados, os marcos humanos e naturais da região mutilados pela Guerra, a bússola nem sempre confiável, o sol escondido por um céu nebuloso de incêndio. E Gomez ficava observando o Hung à distância, sem saber se intervinha ou não, se tinha razão para tanto.
Hung encontrou um peixe caído no chão, ainda vivo, se debatendo. É, um peixe vivo, à quilômetros de qualquer curso d'água. O'Folley fez uma piada sobre um velho desenho animado na tevê , mas ninguém entendeu: o peixe estava todo coberto pelo que parecia ser uma capa de ovos, como os de sapos, na região da cabeça...mas , se observados de perto , via-se que os “ovos” eram na verdade uma série sem fim de pequenos e arregalados olhos sem pálpebras .
Coisas assim começaram a aparecer mundo afora desde a Guerra. Monstros marinhos, naufragados em praias distantes. Impossíveis, inclassificáveis. Vindos da Zona de Exclusão. Não eram meras crias de laboratório, armas biológicas ambulantes como tantas outras lançadas e testadas durante a Guerra. Dissecadas, essas quimeras revelavam uma assinatura única, uma fonte precisa.
Estimulado pela roda que se formava a seu redor, todos nós tentando escapar do tédio da manhã, Hung pregou o peixe no solo pedregoso com a baioneta. O bicho continuava se debatendo, cada vez com maior vigor.
Uma das premissas do experimento em larga escala que foi a Guerra é a das “armas inteligentes”. Premissa furada: não há “arma inteligente”, como não há “tecnologia inteligente”, não importa quantas vezes uma i.a. bata o teste de turing … aliás, i.a.s foram usadas durante a Guerra para desenvolver testes de turing cada vez mais sofisticados … para tentar distinguir usuários humanos de i.a.s miméticas, viróticas... sem sucesso: isso apenas catalizou o surgimento de novas gerações de i.a.s cada vez mais versáteis e perfomáticas. Hoje em dia, ninguém mais é capaz de diferenciar a própria mãe de uma i.a.-spam.
Quanto mais eficiente é um pedaço de tecnologia, mais burro ele é . E não há nada mais mais burro e mais eficiente do que uma colônia de nanobôs.
A novidade do peixe mutante estava sumindo, Hung estava perdendo seu público. Irritado, olhava ao redor, procurando novas ferramentas de tortura, qualquer coisa que não chamasse a atenção do sargento Barnaby. Então, um maçarico aceso apareceu em sua mão, como se fosse um baseado passeando numa rodinha de amigos.
Não há consenso sobre o porquê ou o como do evento que redefiniu a Guerra, o que o Alto Comando apelidou de “Fusão” … não que esse nome explique alguma coisa, realmente. Há quem ainda insista que a coisa toda foi um acidente. Alguém que tenta desesperadamente manter a ilusão de civilidade da Guerra, acredito.
A “Fusão” começou com o uso de uma colônia de nanobôs como arma biológica. Um sistema perfeito em toda a sua estupidez. Essa cepa de nanobôs estava programada para se reproduzir indefinidamente usando o segundo melhor combustível que a Natureza foi capaz de criar: matéria orgânica. O meio de dispersão inicial deve ter sido um aerosol...chuva teria sido o ideal, ainda que fazer chover numa das regiões mais secas do mundo talvez fosse problemático mesmo para os gênios em ação durante a Guerra. Atingida uma certa massa crítica, a colônia passaria de uma escala nanoscópica a uma microscópica, agindo então como germes convencionais. Há quem fale numa fase macroscópica da colônia, menções sussurradas...no mesmo tom medroso e elusivo dos supersticiosos incuráveis ... a uma fase “bolha assassina” de desenvolvimento.
Pessoalmente, acho difícil levar a sério uma arma biológica com esse nome. “Bolha assassina”...
Não importando qual fosse sua configuração final, micro ou macroscópica, a colônia de nanobôs seria mais eficiente se dispussese de uma boa massa crítica de combustível/matéria prima. É tido como certo que o foco inicial de dispersão foi um grande centro populacional. Há bons motivos para se crer que o alvo foi Meca: no pico da época de peregrinações.
O peixe pára de se debater de uma vez quando suas escamas chiam sob a chama . Hung afasta o maçarico, decepiconado, e então a criatura parece entrar em convulsão. Espasmódica: sacode-se com tanta força que parece se rasgar...não. Não são espinhas que brotam através de sua carne: são longas, escuras patas de aranha – quatro pares que se projetam do corpo empalado, agitam-se furiosamente no ar, lutando para fazer com o peixe se desvire.
Agora. Uma arma verdadeiramente inteligente teria se desativado, cumprida sua missão original. Uma arma biológica só presta se tiver um prazo de validade bem, bem definido. Sendo estupidamente inteligente, o que a colônia de nanobôs fez? Quando seu estoque de combustível e matéria-prima acabou, ela finalmente descobriu o melhor combustível que a Natureza já foi capaz de criar: matéria orgânica decomposta e comprimida por milhões de anos. Petróleo.
Por meses, a região foi assolada por tremores de terra intermitentes, e coberta pelo pó e detritos despejados na atmosfera em escalas associadas apenas a erupções vulcânicas e explosões nucleares. A observação direta era difícil e inconclusiva, mas, “bolha assassina” ou não, a colônia parecia estar submetendo a região , de uma só vez, a um processo erosivo que normalmente levaria milhões de anos. E então a demolição da península árabe parou. Também, de uma vez só.
Pegos de surpresa, o círculo ampliado, explodido , as armas apontadas para o peixe-aranha: não sabíamos se era maior o medo da criatura ou do sargento, que só agora notava a confusão e se aproximava levantando poeira, tão forte pisava no chão.
Mas, quando finalmente aceitou que não conseguiria se libertar sozinho, o peixe começou a gritar.
Os monstros marinhos, as quimeras, as aberrações migratórias que surgiram mundo afora, todas elas, mortas. Todas elas apresentando em nível microscópico, celular, traços fossilizados,cristalizados daquela colônia de nanobôs. Inertes. Dir-se-á mortos, mas sem razão aparente. Dormentes, talvez. Como que aguardando um sinal. Um chamado; vindo do interior da Zona de Exclusão. Do Abismo.
E é por isso que não uso mais lápis, papel. Aqui, tudo o que é biodegradável será degradado, cedo ou tarde. Mais cedo do que tarde. E não há nada mais fácil de ser processado do que matéria orgânica.
Quanto a nós, membros desse safari...Se a Guerra foi um protótipo da guerra futura, nós somos a versão beta. Somos os soldados do amanhã, rá, rá. Se a Zona de Exclusão tentar nos devorar, acabará tendo que nos cuspir de volta. Mesmo que nos mastigue bastante antes disso.
E o peixe continuou gritando. Barnaby tentou impor ordem àquela zona e entender que diabos estava acontecendo, mas logo teve que parar com seus berros furiosos: um vento uivante e ainda mais feroz que o sargento surgiu do nada, veio , chegou, cegou-nos com a poeira levantada, nos escorraçou para qualquer abrigo e buraco que pudéssemos descobrir. O que foi bom: porque logo começou a chover peixe.
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