quarta-feira, 7 de abril de 2010

[conto] temporada aberta [edit. 26/05/10]

TEMPORADA ABERTA


Beirute, Minas Gerais, Brasil: meados do século XXII.
Não importa quais sejam as cores da sua tribo: lá embaixo, na Trincheira do Arrudas, tudo é cinza.


“Vai lá e traz o rabo daquele veado pra janta!”, foram as palavras de incentivo que o novato recebeu, em meio às gargalhadas, assovios e aplausos da sua galera. Acenou para o bando, sem sorrir (não veriam seu sorriso falso, forçado na semi-escuridão, lá embaixo), enquanto a corda com a cinta era puxada às pressas, o pequeno grupo sumindo além da borda da Trincheira antes dos ecos de sua despedida, antes que uma patrulha inimiga os ouvisse.
O novato se pôs logo a caminho pela mesma razão, mas sem a mesma ligeireza, lutando com a lama que cobria quase todo o fundo da Trincheira (lutando consigo mesmo:atolado no passado). Não podia permanecer parado se não quisesse ser um alvo fácil para as patrulhas da margem inimiga - e não podia permitir que sua presa pedisse ajuda. Logo, estava envolvido numa corrida em câmera lenta com a presa e as patrulhas: todos atolados ali, na lama que era o defunto Ribeirão Arrudas ; no fundo do buraco daquela vidinha fodida.
Havia uma vantagem naquela lama toda, é claro. A presa deixava rastros que o novato podia enxergar com clareza no contraste bruto dos holofotes, espaçados irregularmente lá em cima, nas bordas, todos voltados para dentro. A luz denunciava a passagem do outro, mas também entregava o novato, que se arrastava então de fiapo de sombra a fiapo de sombra, seguindo as marcas frescas.
Lembrava-se que costumavam usar cães naquele ritual de iniciação; os bichos encontravam a presa bem rápido, mas atraiam as patrulhas inimigas com seus latidos e  o novato em teste quase sempre perdia aquela corrida com a presa, os latidos, as patrulhas, a lama. A lama, feita de lixo e terra, mas não água: sangue, escoado dos dois lados da Trincheira.
Chapinhando, chapinhando, chapinhando. A “presa”: seria tolice de sua parte gritar por ajuda, não teria como saber quem a ouviria e a alcançaria primeiro, a patrulha do seu lado da trincheira ou seu perseguidor. Mesmo assim, houve aquela vez, a única: alguém teve a idéia de costurar os lábios da presa, para que não pedisse ajuda às patrulhas de seu lado da Trincheira . Exceto que a grande razão daquela caçada tradicional não era a iniciação dos novos soldados por si só: era o ibope , e o ápice daquele pequeno drama reencenado anos afora era o momento da execução do membro da tribo inimiga, capturado pela câmera do fuzil que todo novato levava consigo.
E a execução sumária, mesmo que ao vivo, de um inimigo que não grita ou geme seu medo e que não implora pela própria vida não tem graça.
Chapinhando - o novato destrava o fuzil e o ergue sem pensar, máquina . A sombra ziguezagueante que para a sua frente, sob o olho de um holofote: apenas um rato gordo e indolente. O roedor cheira o ar, fita o novato de lado, segue seu caminho num bambolear bem nutrido e esnobe (eis um debate sem fim certo, nesses tempos : qual a melhor carne, a de cachorro ou a de rato. Uma solução fajuta costuma ser alimentar os ratos com cachorros e ficar com o melhor dos dois mundos, ou um pouco de cada, ao menos).
Sem tempo para os tremores da adrenalina que para de correr: o novato trava o fuzil e continua chapinhando através das sombras. Podia imaginar a frustração da sua “galera” lá em cima, a patrulha gêmea à do lado inimigo, seguindo o novato discretamente como se cuidasse apenas de suas rondas noturnas, regulares. A galera estava sempre atenta ao alarme da câmera em seu fuzil; quando a arma era destravada, um pequeno sinal era emitido , o bando convergindo para sua posição, pronto para tirar o novato do buraco. O destravar da arma dava início à transmissão dos sinais de áudio e vídeo: indicava que a presa estava sob mira e prestes a ser executada.
Esgueirando-se pelas sombras como um rato: não havia transmissor-receptor de webtv nem em seus bolsos, nem nos pulsos, nem dependurado sobre o peito, enganchado numa lapela ou manga, ou implantado no tórax como um marcapasso. Seu único contato com o resto do mundo era através dos sinais do fuzil , que eram de mão única e ainda, assim, um risco calculado; de outra forma, o inimigo poderia interceptar e rastrear as comunicações entre a galera e o novato e triangular sua posição na trincheira. Esse estava, de fato, tão sozinho no fundo daquele buraco quanto sua presa. A única, grande diferença era que o fuzil estava em suas mãos e não nas do outro.
Era essa a única diferença que contava, certo? Todo o resto era igual, de qualquer lado da Trincheira em que se estivesse enfiado. Racionamento de água limpa, de comida saudável, de energia. Falta de trabalho ; falta de pespectiva – ausência de horizontes. De futuro. Nem o lixo sobrava pra decoração do barraco. mas o ódio : ah, esse, sim, abundante, e praticamente um consolo, e o mesmo nas duas tribos, esse ódio que irmanava toda a gente ao redor da Trincheira.
Rastejando pela lama, chafurdando. O novato não podia parar e ouvir a Trincheira, medir a distância de sua presa, ouvir o chafurdar do outro. Em tempos de guerra, não havia pausa para reflexão.
E o novato não podia parar, e não queria ir adiante, mas ia. Sabia como aquilo tudo iria terminar e não tinha pressa, não queria chegar lá: no fim. Onde o esperava a presa, que não iria muito longe, não em sua idade: e talvez, ao contrário de seu perseguidor, quisesse que tudo acabasse logo.
Sem pausa, sem tempo para lamentações. O inimigo não tinha rituais de iniciação tão elaborados quanto o daquela caça, mas suas execuções públicas eram ainda mais cruéis. Seu ibope era maior, também.
Os soldados capturados pela outra tribo eram obrigados a lutar entre si até a morte, em pequenas arenas, sob os incentivos sanguinários da multidão ao redor. Lutavam um a um, semi-nus, e cobertos de penas de galinha. As mãos sempre amarradas nas costas e, amarrados nos pés de outra forma nús, esporas afiadíssimas (esta, a primeira lição ensinada aos novatos dos dois lados: o inimigo não é gente, o inimigo é um animal, bicho – uma presa).
Havia apostas, é claro. Informais, em meio à multidão presente ao espetáculo, mas informatizadas -  com imposto , inclusive - pela Rede afora. Qualquer um que recebesse transmissões da guerra das duas tribos – e isso incluía as execuções de soldados capturados – poderia apostar no resultado de cada evento. Plena interatividade: as duas tribos financiavam suas campanhas com o licensiamento das transmissões – e recebiam bônus generosos de acordo com o ibope gerado.
Sua participação nos lucros das apostas era mínimo, no entanto. Essa parte do bolo cabia aos Cartolas, os agentes de cada tribo, que zelavam pelos interesses dos seus pares, agenciavam os contratos de transmissão que eram a única fonte de renda garantida daquele povo. Logo, deveriam ser gratificados em escala maior que os meros soldados nos campos de batalha, certo?
O público pagante tinha seu espetáculo sangrento. Os Cartolas tinham seu lucro. E as duas tribos tinham seu ódio mútuo reforçado, garantido.
Sem chapinhar, dessa vez, mas um respirar pesado, forçado, doloroso até. O novato espantou-se não com o encontro, mas com sua própria reação: estava sereno,quase distante, ao se deparar com  a presa encostada à parede negra de imundice, sob a proteção densa da sombra, tentando recuperar o fôlego.
Estava esperando por seu caçador, é claro. O novato se aproximou calmamente, arma abaixada, preocupado apenas em ficar longe das luzes dos holofotes. O outro tinha péssimo aspecto; não apanhara tanto em seu cativeiro, mas estava coberto daquela lama do fundo do mundo,e visivelmente cansado, exausto. Gritava sua idade mesmo através da camuflagem de sujeira.
O novato segurou firme seu ombro, numa tentativa honesta mas provavelmente fútil de conforto e ofereceu-lhe seu cantil. O soldado inimigo tentou sorrir e balançar a cabeça em reconhecimento agradecido,mas imediatamente, já bebia com gosto, com desespero, até.
Depois, ainda sem trocarem uma palavra sequer, caminharam de volta à luz. A presa, resignada antes mesmo da caçada começar, bem visíveis em seus ombros todos os seus anos de luta. Era um veterano do outro lado. Tinha idade suficiente para ser o pai do novato, e o era, de fato.
Ninguém escolhe o lado da Trincheira em que nasce, mas a mãe do novato escolhera mudar de lado quando o filho ainda era pequeno demais para sacramentar sua lealdade. O verdadeiro pai daquele soldado em iniciação era sua tribo - mas aquela era a hora de prová-lo de uma vez por todas.
E a aposta corrente era essa, afinal: será um filho capaz de matar o próprio pai a sangue-frio, mesmo sendo os dois inimigos jurados? Não importando o resultado, aquele seria um espetáculo e tanto. Bateria recordes de audiência , e de lucro.
Ninguém parecia se lembrar de como a guerra começara. Havia rumores de uma disputa por um pedaço de terra lá pelos lados do Pântano da Pampulha, mas ninguém sabia ao certo.  Depois de começar, a coisa se perpetuara sozinha. A Tribo da Raposa , humilhando e executando seus prisioneiros em rinhas; a Tribo do Galo, fazendo seus novatos perseguirem e exterminarem o inimigo indefeso em caças à raposa.


Destravando a arma, erguendo-a, surpreso com sua dificuldade em mirar aquele alvo imóvel, voluntário, -surpreso com as próprias lágriamas: o novato nunca saberia como aquilo tudo começara. Mas sabia muito bem como terminaria.
Terminaria com uma escolha inteiramente sua.

Um comentário:

Gilmar disse...

Uma analogia interessante. Imagino que os mineiros dvem ter facilmente identificado o lado a qual pertencem. Só me incomodou a referência ao Ibope, como sinônimo de audiência. No mais, um tanto claustrofóbico, mas bem escrito.