quinta-feira, 25 de março de 2010

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MONSTROS SAGRADOS

O velho ator fora morto e ressuscitado tantas vezes que já nem tinha mais certeza da própria identidade. Parecia... Peter Cushing?, mas talvez fosse apenas um fã do homem, projetando suas memórias incompletas na imagem embaçada do espelho, seus olhos quase inúteis, o humor vítreo custando a se regenerar desde sua exumação recente. Tão lerdo em sua recuperação quanto as células nervosas do morto-vivo. De qualquer foram, o homem era um profissional, acima de tudo: não deixaria que detalhes como decomposição adiantada atrapalhassem sua perfomance,ora essa.

...Cristopher Lee? Vincent Price?...ah, quem dera. Debaixo daquele pequeno e incansável exército de maquiadores poderia estar qualquer um; um John Carradine quem sabe. A neurose soava americana, mas aquela irritação um tanto esnobe...? Era um inglês, com certeza. O desejo um tanto urgente  por chá o confirmava. ...mas talvez fosse indiano. Chinês? ...ou imigrante do leste europeu. Qual era mesmo o nome daquele romeno... Klaus Kinski? Não, esse era alemão. Ou talvez austríaco.
“Com licença.A senhorita poderia ter a gentileza de me dizer qual o meu nome?”, o velho ator pediu,segurando sem força o braço de uma das maquiadoras. Que procurou sem sucesso por um crachá no terno do morto, antes de responder: “Sem sorte, amor. Nunca vi mais vivo, lamento, e já tiraram a etiqueta do dedão de seu pé. E meu nome é George e isso no meu rosto é barba e não maquiagem de palhaço, paixão.”
Enfim. O morto se aquietou, constrangido, ruminando suas lembranças , tentando editá-las na ordem certa . Não precisava estudar suas falas, eram quase sempre as mesmas, tudo parte de um longo mas não muito variado repertório de filmes de horror que sabia de cor ...mesmo que ao avesso.
Conduziram-no com gentileza à locação, afinal. Esse cinema moderno: tudo “ao natural”, tudo autêntico, ao vivo. A platéia logo ali, junto à equipe, que ajudava a organizá-la como gado no curral. Bah! Qual o problema com os bons e velhos efeitos especias,hein,hein?! Cadê a magia? Para aquelas novas gerações, imagens geradas por computador não bastavam mais, nem realidade virtual, nem tevê realidade, nem porcaria nenhuma que não estivesse bem na sua cara, e tangível. Povinho sem imaginação, esse.
Irritado, o velho monstro mal ouviu as instruções do diretor ; recém-ressurecto, também? Parecia fresco , cheirava mais a formol que a carne decomposta... bah, esses defuntos recentes acham que sabem de tudo! No seu tempo...
Mal registrou o grito de “Ação!”, mas logo percebeu a turba, a “platéia”, avançando em sua direção com aquela mesma expressão meio alucinada e sanguinária em cada rosto, e em cada mão uma tocha ou uma foice ou um forcado, e foi então que a verdade o atingiu feito um raio numa noite de tempestade.
Merda: ele era Bela Karloff.

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