sábado, 13 de março de 2010

[conto] 1 x Zumbilhão

1 x ZUMBILHÃO
[edit. 02/01/11]
Silva desperta de mais uma soneca desconfortável no sofá da sala de tv com a tosse asmática de um curto-circuito , seguida  do cheiro brutal de cabelo queimado. Cata o controle remoto do chão acarpetado - e já um tanto poeirento, nota com irritação - diminui o volume do gigantesco televisor tela plana, ainda exibindo em loops de memória digital compactos dos jogos do Brasil em copas passadas. O troar da torcida e o frenesi da locução são substituídos pelos ganidos que vêm lá de fora, dos jardins , das ruas, do resto do mundo.
Silva liga as luzes potentes que iluminam todo o jardim como o gramado de um estádio de futebol . Da sacada de seu quarto, assiste indiferente às tentativas  desajeitadas de mais um zumbi  que tenta se desembarçar dos fios eletrificados que encimam os muros, em convulsões sacolejantes   . A carne crepita , já enegrecida, exalando nuvens de branco vívido. Os gritos incoerentes de seus companheiros são audíveis, detrás dos muros, como que incentivando-o a ir em frente em sua invasão peralta. A criatura só poderia ter chegado ali por acidente, subindo às costas dos outros, empilhados , amontoados contra as verdadeiras mulharas que cercavam a propriedade.
Foi só por acidente, também, que se desembaraçara afinal dos fios ; o corpo semi-tostado retesa-se e se arqueia como um peixe fora d'água, a própria violência de seus espasmos jogando-o sobre a grama do jardim. Terá o bramido da multidão aumentado, após esse movimento?, Silva pensa indolentemente. O zumbi se ergue fumegante, sem sentir dor ou dúvida, caminha ziguezagueante , solitário, pelo vasto gramado. Silva ensaia um movimento em direação ao rifle de caça carregado, que repousa contra a balaustrada, sem tirar os olhos do invasor vacilante.

Seu ir e vir trôpego poderia ser quase estratégico, mas, não, conseguira chegar até a metade do caminho entre muro e casa apenas por sorte; inevitavelmente, o zumbi pisa numa das minas terrestres espalhadas pelo caminho . O som da explosão súbita parece calar os clamores da horda sem mente,fora de vista, enquanto uma chuva de terra e pedaços de carne precipita-se sob as luzes potentes. Uma mão enegrecida , de pele quebradiça como solo seco, aterrisa na sacada, aos pés descalços de Silva;  um anel de ouro reluz num dos dedos, que se abreme e se fecham espasmodicamente como as patas de enorme barata agonizante. Silva chuta a mão para o jardim, dá as costas aos gritos da horda, que retornam, redobrados e, bocejando, entra em casa.

Durante o cooper matinal pelo perímetro da mansão, Silva examina os estragos do último ataque; decide deixar para depois a reforma do buraco no campo minado, seu mapa decorado como um hino patriótico, mas muda de opinião, voltando, resmungante, após o fim do exercício, com pá, enxada, sacos de lixo, espeto de catadores de papel para os pedaços de carne espalhados , novas capas de grama e uma nova mina terrestre. Seu campo minado particular fora um custoso mas necessário improviso, mesmo que se mostrasse eficiente: meses antes, Silva tivera que sacrificar todo o canil, quando um dos pastores alemães comera um pedaço de zumbi e adquirira aquele gosto noturno pela carne de seus semelhantes . Bem como pela carne humana, também.

Após a revisão diária do gerador de energia, e após muito ruminar, Silva se convence afinal a empreender outra viagem à cidade, à cata de mais combustível e quinquilharias diversas. A adega da casa precisava ser reabastecida urgentemente, também, e isso lhe servia de maior incentivo.

As ruas estavam quase todas bloqueadas por carros abandonados , escombros e entulho de todo tipo , mas não os tetos dos edifícios da cidade. Silva se obrigara a aprender a pilotar helicópteros e transformara a quadra de tênis da mansão em heliporto. Tivera suas aulas autodidatas num aeroporto abandonado - como todos os demais, agora - onde preparara também um hangar que lhe serviria como oficina e armazém e refúgio alternativo ; era um pequeno milagre, ou índice de sua boa sorte épica, o fato de ter sobrevivido a suas primeiras experiências de vôo, entre outras razões, porque costumava se chapar com tudo o que estivesse a mão para arranjar coragem.

De qualquer forma, sempre havia rotas de fuga alternativas, como a dos esgotos da cidade, que Silva já revirara e mapeara e minara com cuidado. Mas antes despencar do céu por uma cagada acidental do que chafurdar na merda ainda mais.

Silva implodiria uma série de edifícios para isolar o bairro, mas isso não impedira que a horda continuasse a convergir em direção a seu refúgio. Como que seguindo as indicações de placas de propaganda nas estradas, Silva supunha: “última refeição em trocentos quilômetros!”.

Para ocultar o som do helicóptero em vôo e desviar a atenção da horda durante suas expedições , Silva instalara auto-falantes ativados por controle remoto em pontos estratégicos da cidade , berrando as faixas de CDs de novo e de novo e de novo. Quanto mais execráveis as músicas, melhor seu efeito. Fazendo uso novamente de explosivos potentes – tudo feito na garagem; Silva se sentia às vezes como “as forças armadas de uma pessoa só”- fizera dos auto-berrantes armadilhas em massa para zumbi. Por mais que explodisse a horda, porém, ela sempre se regenarava, como que nutrida por ondas migratórias sem fim chegando à cidade do mundo inteiro.

Silva deveria ser uma atração turística e tanto naquele canto do inferno.
Seguiu a rotina de sempre na viagem de compras daquele dia: metódica, mecanicamente. Catou seus suprimentos quase às cegas, mantendo-se dentro das rotas já estabelecidas; os inevitáveis zumbis gatos-pingados surgiam dos cantos mesmo nas zonas mais limpas da cidade, e não sem aviso, seu fedor e seus gemidos irritantes sempre os delatando. Silva simplesmente parava de empurrar seu carrinho de compras e explodia fuças a esquerda e a direita, com tiros certeiros, mesmo que às vezes nem se desse ao trabalho de mirar direito, e seguia adiante com a cara enfiada na lista de tarefas.

Seu maior inimigo não era a horda, era o tédio.Voltava para a fortaleza em piloto automático; em piloto automático, guardava as compras,checava o gerador , o circuito interno de tevê e os alarmes. Um zumbi do lar. Sentava-se enfim em frente ao gigantesco-televisor-tela-plana-ainda-exibindo-em-loops-de-memória-digital-compactos-dos-jogos-do-Brasil-em-copas-passadas.

O tédio era tamanho que não tivera outra saída senão fazer planos cuidadosos para o futuro. Acreditava que poderia educar a horda, com tempo, décadas de trabalho continuado, se fosse preciso.  A resposta das criaturas a estímulos toscos como a música era um bom sinal : Silva estava certa de já ter notado grupos das criaturas tentando acompanhar aquelas melodias atrozes . Tivera que se esforçar um bocado para não detonar todo o coro maltrapilho na hora, mas admitia:melhor um mundo cheio de gente com péssimo gosto musical e nenhum senso de ritmo do, que, bem. Do que aquilo. Talvez.

A opção a esse sonho insano de salvar o mundo através da música popular  era simplesmente meter uma bala na cabeça. O que talvez fizesse mais sentido, afinal. Silva brincara de roleta russa por um tempo, suas sessões regulares coincidindo com aqueles momentos de paz sonolenta, cansada, no fim dos dias longos e atarefados. Silva se sentia no direito de se matar , mas sua sorte estúpida sempre a poupara e ela desistia da idéia, emputecida, sem saber ao certo se estava assim abraçando o acaso filho da puta ou simplesmente mandando-o tomar no cú.

A boa sorte era um fardo, o tédio era um fardo, viver era um fardo: como ser mulher costumava ser  um fardo naquele país do tamanho de um continente e com a mentalidade de um ilhéu. Tudo era injusto, então?

Silva dava de ombros, agora: diminui o volume da tevê, começa a relaxar, prestando atenção no rumorejar quase oceânico da horda nos muros. Relaxando ainda mais: era fácil imaginar que gritavam seu nome, às centenas, milhares, milhões. Era fácil guiar a mente e as mãos deslizando , mais do que correndo em direção àquele gol no fim do gramado iluminado, toda dedos , negociando seus avanços omo uma enxadestria  (e não um touro enfurecido de chuteiras) pelo vasto campo verde, o mundo inteiro urrando em seu apoio, o orgasmo explodindo junto com a galera...

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