terça-feira, 2 de março de 2010

[mini-conto]o monstro da semana: jacarés albinos

O MONSTRO DA SEMANA:
JACARÉS ALBINOS
Os pequeninos não haviam nascido como gente de verdade e, antes do Início do Mundo, eram tratados simplesmente como animais por seus criadores. Nascidos em laboratório para viver e morrer como cobaias: essas criaturinhas pálidas e frágeis, versões reduzidas e encurvadas de seus deuses progenitores. Dóceis, infelizes hominídeos de proveta.
O fim do mundo dos Homens foi o Início do Mundo dos pequeninos, no entanto. Aquela espécie artificial e albina foi largada a própria sorte, deixada para morrer quando os laboratórios, as universidades, as empresas, todo o resto do mundo desabou sob seu próprio, insuportável peso. Os pequeninos não foram criados para durar, mas foram desenhados para aprender, para se adaptar às novas drogas, testes, torturas que seus mestres desejassem experimentar. Sobreviveram ao colapso da civilização e se refugiaram nos subterrâneos das cidades em chamas, fugindo de um sol mortal para seus pequenos corpos sem pigmentos e também da fúria sem foco dos Humanos reduzidos à barbárie.
Despejados esgoto abaixo como abortos vivos: os pequeninos não só sobreviveram à provação da liberdade como se fortaleceram e prosperaram em seu novo lar , seu verdadeiro lar.
A escuridão não os intimidava; a visão nunca fora o maior de seus sentidos(servia apenas para que enxergassem o horror de sua antiga vida em cativeiro). O interior da terra provia calor e água suficientes e o abundante lixo humano era o substrato ideal para o cultivo de um fungo que supria suas necessidades alimentares. E, em sua vida rústica mas segura, os pequeninos dedicavam-se gerações afora apenas a lembrar, ensinar, pensar e criar.
Os Humanos lhe haviam incutido o germe da linguagem, mas cultivado apenas o suficiente para que os pequeninos expressassem sua dor em detalhes, para relatórios sádicos sem fim. Ali, em seu mundo próprio, o pensamento e a cultura dos pequeninos criou raízes e floresceu para além de suas manifestações primitivas, verbais.
A visão diminuta dos pequeninos seriam pobres janelas da alma para essa nova semiótica, explosiva,barroca e de altíssima definição: 
A audição não carece da voz para receber sentido e sentimento, que podem ser melhor transmitidos em ritmos e música que se faz com mãos, pés, o corpo todo - qualquer objeto e o mundo inteiro são instrumentos de fala para seres com ouvido universal. A escrita e o cálculo não carecem da visão, quando se pode perceber e transmitir conceitos e relações causais num vocabulário de feromônios mais diretos que qualquer elaboração retórica, e de gradações granulares, refinadíssimas de calor e frio que se apreende por toda a extensão da pele, esse, o maior órgão dos sentidos, e de odores e gostos em permutações sutilíssimas, inesgotáveis.
A cultura dos pequeninos era um vasto palimpsesto em três dimensões, uma decoração virtual  e sensível de pichações caleidoscópicas que envolvia todo o seu habitat. A cultura estava dentro e fora dos pequeninos, por todo lado.
Em sua nova e rica existência, a dor da vida antes do Início do Mundo cedera a uma tristeza piedosa:  o pequeninos apenas lamentavam a existência miserável dos Humanos, presos a seu mito da realidade fora da caverna, onde tudo era apenas luz e sombras, acertos ou erros, e palavras sem fim e sem sentido.
Os pequeninos prosperavam e esperavam. Esperavam que os Humanos abandonassem a cegueira da luz e aprendessem a enxergar de verdade, na escuridão; que viessem resgatar o ouro do reno de sua memória cultural, e que escolhessem relembrar apenas as coisas boas de sua história pregressa e defunta, essa história que os pequenos guardavam com cuidado, recolhida e catalogada dos dejetos da Humanidade.
Se os Humanos não viessem, ainda assim os pequeninos continuariam esperando, em paz, na escuridão, como era no Início dos Tempos, como seria para sempre, naquela cálida e vivza existência atemporal negada aos pobres, estúpidos, mortais Humanos.

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