sexta-feira, 5 de março de 2010

[conto]enquanto isso, na cozinha do inferno

ENQUANTO ISSO, NA COZINHA DO INFERNO

O negociador estava atrasado e o tenente-reverendo O’Riley já imaginava que nunca conseguiria lavar aquele cheiro de enxofre e de vômito da batina. O sequestrador havia resistido aos métodos usuais de submissão: ordens gritadas em latim, bombas de incenso, spray de água-benta, choques elétricos com crucifixos. O demônio apenas se ria e se babava todo, cuspindo palavrões de trás pra frente. Não havia muito mais o que o tenente-reverendo e seu time do Esquadrão de Exorcistas da Polícia Metropolitana de Nova Amsterdã pudessem fazer - além de rezar, é claro.
A vítima era uma donzela que divia aquele apartamento estreito e mal-arejado com os pais,  um casal já idoso e frequentador da igreja, que aguardava apavorado o desenrolar do caso na entrada do cortiço. Pobre gente, trabalhadora e temente a deus: a culpa era geralmente dos mais jovens naquelas situações, mas a reputação da moça também era límpida, virginal. Aquele caso poderia ser mais complicado do que indicavam as aparências; a perspectiva de passar a noite inteira ouvindo aquela ladainha demoníaca fez o tenente-reverendo O’Riley soltar uma pequena praga em voz baixa, seguida de um mal-disfarçado sinal da cruz em contrição.

O impasse persistia desde que o demônio fizera suas últimas exigências há algumas horas: álcool, chocolate e pornografia eclesiástica , o bilhete manifestando-se como estigmas no abdomen da donzela (e os homens de O’Riley ficaram menos assustados com as marcas demoníacas do que com a visão das ceroulas de uma donzela, a primeira vez para a maioria deles). Desde então, porém, permanecia apenas pulando e berrando sobre a imensa e decrépita cama de molas que ocupava quase todo o apartamento. E o tenente-reverendo conteve uma nova praga a custo, ao se lembrar que esquecera seu fiel frasco com uísque na chefatura de polícia.
Seus resmungos foram interrompidos por uma comoção no corredor ; saiu do quarto para averiguar a situação, o demônio diminuindo sua pulação e sua gritaria aos poucos, como que percebendo afinal que havia abusado demais da  sorte. E sua ansiedade inicial transformou-se rapidamente em pânico ao ver o policial voltando ao quarto, sorridente, triunfal, dessa vez, seguido de um enfermeiro que empurrava, numa cadeira de rodas, um velhote em pijamas, cabeça raspada, uma cicatriz horrenda na testa e amarrado numa camisa de força.
O velhote babava com o queixo sobre o peito, parecia dopado ou inconsciente - até começar a sorrir , um sorriso lento e hediondo que distorcia aquela cara inteira como se fosse um trapo: ao erguer a cabeça, o demônio quase urinou nas ceroulas da donzela ao encarar aquelas pupilas verticais, reptilianas.
“Ah não”
“Ah sim”
O velhote na cadeira de rodas teve uma convulsão violenta e se aquietou de vez, como que desmaiado, e aquele era o único sinal vísivel de que o demônio-negociador havia saltado de seu corpo para o interior do corpo da donzela possuída. Seu nome era Coprfnagulptuag,ou algo do gênero, e era uma entidade vira-casacas e condenada ao fogo eterno, como todas, mas o tenente-reverendo O’Riley tinha que admitir: era um filho da puta eficiente (ops, benzadeus).
A garota sacudia-se toda, agora, agitando as mãos sobre a cabeça como se os cabelos estivessem em chamas. Sua voz alternava-se entre o miado histérico do demônio-raptor e o latido autoritário do demônio-negociador. O meliante fazia um último deseperado esforço para mendigar sua liberdade e ganhar tempo para alguma fuga louca e o outro teve que apelar para a força, esbofeteando a face esquerda da moça com sua mão direita. Quando o co-possessor tentou reagir , mordendo o pulso agressor, o negociador aplicou-se uma chave de pescoço, e logo os dois, e o corpo da meina, rolavam aos gritos pra fora da cama.
Era um espetáculo revoltante, mas que terminou rápido. Logo a garota veio rastejando, ofegante até a cadeira de rodas, sacudiu-se toda como que levando um choque elétrico e o meliante projetou-se na casca vazia do velhote. Foi levado rapidamente para longe da cena do crime, berrando por seu advogado.
O negociador, agora sozinho no corpo da moça, ergueu-se cambaleante, esfregando os hematonas já visíveis no pobre corpo, mas, declinou a ajuda dos oficiais, chamando o tenente-reverendo de lado para uma conversa particular, urgente: havia acabado de obter da mente da confusa e apavorada vítima novas e importantes informações referentes ao caso.
Logo desceram até a entrada do edifício, o demônio vestido de moça com uma caneca de café e rum nas mãos e uma manta sobre os ombros, e os pais da menina correndo em sua direção com gritos e lágrimas de alegria, suas mãos estendidas para um abraço sendo interceptadas, porém, pelas algemas do tenente-reverendo O’Rilley.
“Meu senhor, minha senhora: estão presos por tentativa de fraude do seguro anti-possessão demoníaca.”
Os dois velhos primeiro se encararam boquiabertos, depois se voltaram ao mesmo tempo para a filha que sorriu e lhes deu uma piscadela cúmplice com um par de olhos de serpente.
“Meu colega aqui acaba de me informar que os senhores não deram as chibatadas semanais requeridas por lei em sua filha adolescente, facilitando assim a possessão da pobre criança por um demônio oportunista.”
“oh meu deus oh meu deus oh meu deus”
“Não blasfeme, mulher! Seus delitos já são bem graves.”
E enquanto os dois delinquentes senis eram levados cabisbaixos para o camburão, o demônio-negociador despediu-se dos dois com uma risadinha zombeteira .
“Se precisavam tanto assim de dinheiro, os senhores deveriam ter pedido um empréstimo ao *meu* chefe.”

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