sábado, 11 de dezembro de 2010

[conto] lugares comuns: selva urbana

LUGARES COMUNS:SELVA URBANA

1. OLHE PARA OS DOIS LADOS ANTES DE ATRAVESSAR UMA RUA
Lobo parou à margem da faixa negra de concreto, aquele rio imenso, tornado maior, sem extensão,na noite escurecida de vez pelas nuvens ; parou, esperou. Havia rastejado lenta, penosamente até a cratera no calçadão;mal erguia os olhos e focinho acima da borda, agora , cheirando, observando, ouvindo o tanto que lhe permitia a única orelha que lhe restara daquela briga com o cortador de grama hidrófobo ... Esperando.

Não podia se apressar e não podia esperar muito tempo; prestando atenção na direção em que o vento soprava, sempre esperando-temendo que as nuvens voassem para outras bandas,que sua deixa sumisse com elas. Desejando, na verdade, que as nuvens sumissem agora ... e não quando ele estivesse no meio da rua.

E mesmo que sua cobertura durasse a noite inteira...tinha os olhos, nariz e orelhas - orelha - bons para caçar na escuridão... mas não tinha sensores infravermelhos ou sonar embutido. Engolindo em seco, fazendo uma rápida oração ao grande Fido nos céus, Lobo pulou para fora de seu querido buraco e começou a atravessar a rua, correndo sobre as patas traseiras.

2.ESPERE O SINAL FECHAR ANTES DE ATRAVESSAR UMA RUA
O escuro denso da cidade era atenuado apenas pelo pulsar contínuo, leve, das trepadeiras supercondutoras que revestiam cruzavam atravessavam todos os antigos, ciclópicos edifícios.  Algumas das espécies tinham um relacionamento simbiótico um tanto perverso com as criaturas dominantes daquele habitat duro.

As trepadeiras eram dotadas de sensores de movimento rudimentares. Com suas gavinhas presas ao chão poderiam , por exemplo, perceber a sutil vibração causada pela correria assustadiça de um animal que cruzasse a rua e poderiam, assim, alertar seus parceiros simbióticos do aparecimento dessa nova presa.

Lobo sempre agradecia a acuidade de sentidos que lhe fora legada por seus ancestrais... da mesma forma com que maldizia algumas das limitações desses sentidos. Ele poderia distinguir sem muita dificuldade as diversas flores discretamente luminosas que pontuavam a massa de cabos das espécies trepadeiras em suas centenas de quilômetros de extensão entrelaçada... mas não teria como perceber a variação de cor de algumas dessas flores: as transições de verde/laranja/vermelho que denunciavam sua chegada aos donos da cidade, que aguardavam nas sombras o sinal de alerta.

A noite quieta e piedosamente escura ganhou vida quase que de uma só vez: faroletes começaram a piscar em conversação de código morse além dos parapeitos dos estacionamentos que ladeavam quase toda a extensão da rua.

As cavernas dos monstros: os roncos e urros de seus motores acordando, as buzinas , seus gritos de guerra fazendo a rua e a cidade inteira vibrarem - os faróis acendendo-se, enxameando pelas rampas abaixo em direção ao nível da rua.
 
Aqueles filhos dum gato capado!...
 
3.USE A FAIXA PARA PEDRESTRES
Lobo engoliu com força o próprio pânico; ao invés do risco louco de correr de volta à margem, disparou para a divisória da pista, mais próxima, aquela falsa,estreita calçada, com alguns trechos de cobertura ainda inteiros e sólidos; aqueles recantos exclusivos daqueles paquidermes gentis, agora extintos, os ônibus.

Restavam apenas os predadores,agora, e pareciam desesperados, a caça deveria estar pouca. Vinham em estouro de manada metálico e informe - todos os modelos e tamanhos numa variedade que a mente desesperada de Lobo não conseguiria apreciar - vorazes, esse esforço brutal por presa tão diminuta.

Lobo foi cercado em menos de um minuto. Os predadores não poderiam alcançá-lo onde se encarapitara, mas , ali, certamente, não poderia ficar: mesmo que não perdesse a consciência com a força demoníaca dos rugidos, a fumaça dos escapamentos acumulava-se mais rápido do que se dispersava,o bastante para sufocá-lo em minutos.

Havia uma saída, e, é claro, era a mais idiota imaginável: maldizendo a falta de dextreza acrobática de seus ancestrais, Lobo arrastou-se até a cobertura da marquise e então pulou , retomando a travessia saltando sobre os capôs das bestas metálicas que pulsavam de raiva e fome sob suas patas.

A adrenalina lhe dava um puta barato...ou talvez aquilo fosse um sinal de ligeira intoxicação pela fumaça dos escapamentos, mas Lobo deu por si latindo de satisfação em sua correria .

4.ATENÇÃO AOS SINAIS DE TRÂNSITO
Lobo finalmente alcançou a outra margem, saltou uma mureta baixa mas sólida, que as bestas metálicas não podiam ultrapassar, chegou quase se arrastando no abrigo de uma marquise anciã. enfim, a língua dependurada,arfante, permitiu-se recuperar o fôlego.

Exausto, ainda, mas sem coragem de parar por muito tempo e arriar-se de vez: procurou os sinais de grafite ancião, encontrou-os, seguiu-os certeiros pelo labirinto de ruínas até a entrada do metrô mais próxima. Descendo as escandarias, seguindo as setas nas paredes, virando corredores sombrios sem fim:encontrando o corredor final, longo,longo.

Aprumando-se:aquele era território sagrado, afinal. Caminhando solene, luzes automáticas acendendo-se e se apagando a sua passagem, revelando a esquerda e a direita, em etapas, as imagens que contavam a via crucis de seu povo, a história mítica de como o mundo chegara até ali e as regras que todo bom cão deveria aprender para sobreviver à selva de pedra. 

Lá no fundo do corredor, afinal: a máquina-franquia local do Grande Dispensador Automático de Ração dos Deuses. O ídolo inexpressivo - um monolito com uma grande célula fotoelétrica no topo, uma boca muda na base. Sob o olhar que nunca piscava, Lobo cumpriu o ritual milenar: retirou do alforje e pôs na boca as embalagens vazias de ração; engatinhou até os pés da máquina, depositou respeitosamente as embalagens no chão; aguardou um instante, sentado sobre as patas traserias, a língua de fora; depois latiu, correndo em círculos - dolorosamente, sua geração já desacostumada ao comportamento quadrúpede- depois rolou no chão, numa direção, na outra, e, por fim, fingiu-se de morto .

Abriu um dos olhos com o doce alarme da máquina;depois, o som suave, o roçar de mais um providencial saco de ração sintética deslizando para fora da grande boca de metal.

O Latido Primordial de agradecimento, o pacote para dentro do alforje, a volta para a boca do labirinto subterrâneo. A ração faria os filhotes de Lobo crescerem fortes e espertos como ele mesmo, com foram seus pais, como foram toda a sua linhagem de ancestral.

Os filhotes, a boa esposa, o ninho - engolindo em seco: agora era a hora da viagem de regresso. Bem, era dar graças aos ancestrais pelo fim de mais um dia de expediente; e - suspiro - agradecê-los ou maldizê-los pela chance de fazer tudo de novo: amanhã. 

E depois de amanhã.
 
E depois, de novo.
 
E mais uma vez...

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