segunda-feira, 25 de junho de 2012

[miniconto] O Brechó da Vó


[escrito para o concurso de junho/2012 da comunorkútica Contos Fantásticos - tema: "Fantasia Urbana"]

Todo mundo no velho bairro conhecia o brechó daquela velha senhora, sempre à porta da lojinha, tomando sol, fumando seu cigarrinho, trocando prosa com algum conhecido, recebendo com um sorriso gentil e sem formalidades qualquer freguês novo ou velho: as portas sempre abertas para o interior tomado por um certo cheiro a suor decantado, roupa suja amadurecida, e que não era desagradável, ainda nem todo freguês em potencial o ambiente, uma certa agorafobia de saldos de liquidação de outras épocas . Não havia traço de naftalina naquele ar quase aconchegante.

A visita à loja da “vó” era como rito de passagem para quem crescia, para quem saía do bairro para o centro da cidade, daí para o vasto mundo dos bairros industriais e comerciais; uma um cado encabulada parada obrigatória para quem precisava poupar seu dinheirinho suado, também o destino de muitos primeiros ordenados. Mas nem todo cliente procurava a vó por falta de opção, que sempre
havia gente com um gosto mais sutil, ciente de que a moda não é feita de novidades, mas de idéias e motivos reciclados , de redescobertas no grande brechó das gerações.

Havia um período de tolerânica nas compras , os clientes mais incertos experimentavam a nova roupagem na companhia desconfiada de um espelho. E, como numa primeira noite de amor, havia aquela falta de jeito em encontrar o nó, botão, fecho, zíper de cada um : sempre na nuca ou na base da coluna cervical, porém. Depois desse primeiro desse primeiro passo as coisas não se tornavam necessariamente mais fáceis; havia o esforço até mesmo doloroso, às vezes, de despregar a pele das carnes e os velhos clientes, ou os mais afoitos , logo extraíam músculos , banha; e certamente havia
quem remontasse a ossada em partes ou no todo , além temerárias reposições de órgãos internos.

Havia os fregueses de olhar mais refinado, é claro, mas os resultados das trocas eram, não raro, de gosto duvidoso.A vó não fazia julgamentos, porém; era quase certo que o cliente satisfeito trouxesse por sua vez sua velha roupagem para venda ou troca. E, claro , sempre havia os arrependidos, e sempre tarde demais. Mas os bons clientes sempre voltavam - e o bom cliente sempre sempre sabe que a troca é tão ou mais importante que a mercadoria.

E se alguém perguntava à Vó (quase ninguém o fazia) o que ela tirava daquilo tudo, ela dava mais uma tragada no eterno cigarro, expirava uma nuvem densa de fumo que escondia o meio sorriso e respondia: “Lucro, meu filho. Porque muita gente sempre vende barato a própria vida.”.

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