SEGUNDA NOITE
Descer a montanha deveria ser mais fácil que subí-la. Descer a montanha, terreno que o bando mal tivera de conhecer na subida, durante uma nevasca? Impossível.
, a sorte alcançando-os, vindo morder-lhes os calcanhares afinal. a boa sorte que haviam gasto, toda, na localização e destruição do ninho.
Um dia inteiro na toca: o descanso seria bem vindo, não fosse a tensão:todos quietos, ouvindo o vento, prestando atenção em qualquer sinal de desabamento.
O território não estava limpo; a resistência ao avanço do bando e à tomada da igrejinha foram mínimos.haveria mais carniçais espalhados pela montanha, e Vlad não poderia deixar de se cutucar: que a sorte do bando não fora tão grande assim. mesmo com a pausa, estavam mais cansados agora.seria mais fácil para um estrategista razoável pegá-los na viagem de volta; mesmo se tal estrategista fosse seu prisioneiro. Especialmente se fosse.
Aquecidos, protegidos, talvez um cado apertados: meia dúzia de marmanjos enfiados numa gruta, mais um sujeito num caixão.
O sanguessuga cantava alguma canção incompreensível:como um velho pescador no fundo do rio, era como lhes chegava o som.pausava o cantorio com suas risadinhas.
O silêncio do bando era...fúnebre?poupando fôlego, ar. esperando sabe-se lá o quê.
Num canto, El Cabongo, anuado, sem saber o que fazer com as mãos. Recebera o apelido não só por ser de origem , não mexicana, mas espanhola (mais ou menos: há quem dissesse que era exilado da República Basca, na verdade, mas difícil saber, na confusão de dialetos que sempre usava); nem por andar sempre mascarado...e ninguém no bando nunca o vira sem aquela máscara de esquiador,que o fazia parecer um praticante de lucha libre que se tornara terrorista. nada disso : o apelido vinha do fato de que El Cabongo tinha o mau-hábito de sacar uma viola quando o bando acampava...e em mais de uma vez quase tivera o instrumento quebrado em sua cabeça, e merecidamente.
Tentava solfejar alguma coisa, quase em acompanhamento....ou em negação...da voz abissal do sanguessuga...e George o mandou se calar com um grunhido.
George era apenas o Inglês; ninguém se animava a lhe dar qualquer apelido pois era negro, e ninguém parecia ter imaginação para lhe fornecer alcunhas que não fossem mesmo que ligeiramente racistas. George era talvez o mais fanfarrão do bando, com um sorriso mais branco que negra era sua pele: tinha também pouco menos de dois metros de altura e era veterano das forças especiais inglesas; desertara quando a Coroa Britânica migrou para a Nova Zelândia, caíra no mundo, quase mercenário, como todo mundo ali.
Era o único soldado profissional do bando (com exceção, talvez, do Doutor...mas quem poderia afirmá-lo?). El Cabongo, além de ótimo rastreador e caçador (sempre negava se lhe perguntavam se aquilo era experiência de guerrilha), era um animal com um rifle. mas George sabia matar com qualquer brinquedo que lhe caísse na mão.
Fora George quem, antes da subida da montanha, jogara a viola de El Cabongo num despenhadeiro.
Todos no bando se entendiam bem, afinal.
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ESPÓLIO (Ambientação e Caracterização)
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ESPÓLIO (Ambientação e Caracterização)
O mundo de jogo de R.I.P. são as altas latitudes do hemisfério norte, onde a Eurásia se torna o Ártico. No mapa-mundi pós-Yellowstone, esse é o novo-velho "farwest"; o aumento das geleiras, o clima inclemente expulsam a população humana do "topo do mundo". A recolonização desse canto de mundo é lenta, tardia, deixada por último, no esquema de coisas mundial pós-crise.
E o que os colonos encontram, na volta e reconstrução dura do extremo norte, são os novos nativos da região.
A Humanidade passou por um período de adaptação penosíssima, pós-Yellowstone; com a destruição sumária da economia mundial,teve que se reinventar política,social,culturalmente, e fê-lo redescobrindo velhas
receitas, antigos sonhos.
O conceito de estado-nação é moribundo; as potências remanescentes, a maioria européias, transferem seus centros decisórios para a Oceania; ensaiam velhos jogos de poder e de guerra na Austrália - e,de forma desastrada, também na Antártica...- mas não têm mais poder para retomar seus antigos territórios.
Ainda mais com o exemplo ainda vivo da que talvez tenha sido a última guerra; durante os anos negros, a península arábica transformou-se num inferno vivo, enegrecido por campos de petróleo que queimam anos a fio, impraticável pelo emprego em média escala de armas biológicas e atômicas: é agora apenas um buraco negro no globo, rivalizando o da América do Norte, e é referido apenas como "Gehena"...
Aliás, dos E.U.A. restava Nova Croatoan, uma zona autônoma permanente no antigo litoral de Nova Jérsei, seus habitantes , abrigados em biodomos , habitats artificiais, razoavelmente auto-suficientes, baseados em conceitos nunca aplicados para a colonização de outros planetas.
O povo ali se pauta por uma ética de trabalho hamish e por uma liberalidade praticamente hippie: sua bravura bem-humorada e engenho são um farol do mundo pós-Yellowstone, a que os povos do antigo-terceiro mundo só puderam sobreviver com a adoção de formas de organização social autônomas,auto-suficientes ...sobreviveram,prosperaram até:passado o horror, podem iniciar com calma o processo de remodelação do mundo.
Mas R.I.P. não é sua história.
Na nova fronteira do extremo norte, o oceano gelado se endurece, forma um capa traiçoeira de geleiras que invadem aos poucos o velho mundo. Esse é "Tule" , o continente fantasma, o continente morto-vivo - o continente vampiro...
(continua, né)
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Noite adentro, inverno adentro: o jogo de paciência. O sanguessuga poderia esperar a nevasca passar com a respiração presa. escolhera deixar de ser humano para sobreviver ao frio, a quase qualquer coisa: hibernando, se preciso, fingindo-se de morto...a espera de qualquer presa de sangue quente passe sobre sua cova. como um réptil: sangue frio.
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Noite adentro, inverno adentro: o jogo de paciência. O sanguessuga poderia esperar a nevasca passar com a respiração presa. escolhera deixar de ser humano para sobreviver ao frio, a quase qualquer coisa: hibernando, se preciso, fingindo-se de morto...a espera de qualquer presa de sangue quente passe sobre sua cova. como um réptil: sangue frio.
(,não:o metabolismo explosivo, na verdade, a falha no processo , o preço da imortalidade: hibernasse, se preciso,mas, se não se ativo, sem se alimentar continuamente, o sanguessuga devoraria a si mesmo.
A melhor estratégia?:terceirizar o horror:permanecia em seu ninho, enviando seu pequeno exército para caçar em seu lugar.)
Vlad e os veteranos também conheciam o jogo da paciência; os dois novatos, não.
"Tico" e "Teco": agitados. tentando se provar. dois garotos escandinavos que cresceram juntos, decidiram cair no mundo juntos. rodar o que sobrara todo, talvez conquistar glórias, fazer nome. eram paus para toda a obra, ajudavam, enquanto aprendiam, tinham bons antecedentes - isto é, poucas manchas em seu passado,ainda - e Vlad precisava do par extra de mãos.
O Doutor cuidava dos dois; sua sobriedade apagava o fogo da agitação juvenil dos dois novatos. ninguém sabia de onde viera, senão que viera do leste, eslavo, parecia,e que era outro pau-pra-toda-obra; "doutor" menos por saber remendar qualquer ferido ...mas porque era um tanto frankensteineano. os novatos respeitavam o Doutor (*todo mundo* respeitava o Doutor, na verdade) porque o homem era uma máquina: - um tanto literalmente, de fato.
Foi pelo bem de Tico e Teco...ora, pelo bem de todo aquele bando... que Vlad pigarreou para chamar a atenção de todos naquele buraco. o silêncio adensou-se quando todos se alertaram, prestando atenção no chefe:que sorriu levemente quando todos olhavam para ele. os veteranos perceberam de imediato o que iam dizer, e começaram a sorrir do fundo de sua exaustão, também (bem, talvez o Doutor tivesse sorrido...não há como afirmá-lo),reconheceram o bordão iminente, disseram-no todos juntos, repetiram-no sem precisar de um-dois-três:
"Quem peidou?"
O sanguessuga ficou quieto o resto da noite.
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