domingo, 18 de setembro de 2011

[conto-curto] O que você vê?

[escrito para o Desafio dos Cem Dias, da comunorkut ESCRITA E ANÁLISE DE CONTOS - Etapa VIII : Quebrando a linha temporal. "O autor deve criar um conto em que a linha temporal não seja direta e contínua."]


A primeira coisa que eu percebo....a primeira coisa que eu sinto...é o cheiro de chuva, o cheiro de terra molhada - barro... O cheiro está forte, a umidade, o frio - mas o cheiro, principalmente...Forte, sufocando.
Está tudo escuro...Quando eu acordo, não consigo entender onde estou - eu abro os olhos e não enxergo nada...


Mas está escuro , e abafado...é difícil respirar...E está tudo sacudindo...Foi por isso que acordei...
Minha cabeça dói...Tudo sacode..Eu quero me segurar, me apoiar, sair daqui, mas as minhas mãos estão amarradas, meus pulsos estão presos...

Eu quero gritar, chamar por ajuda... minha boca está tapada...há um pano embolado dentro da minha boca, outro pedaço de pano amarrado na minha nuca, forte, e tapando minha boca, e está difícil respirar e,e,e eu

Eu estou assustada...eu quero...onde eu estou?

***

Silva encontrou a estradinha de terra com mais facilidade do que imaginava. Também pudera: todo mundo estava procurando nos lugares errados, todos correram na direção contrária. Ninguém pensara em procurar tão perto do local do sequestro.

Os sequestradores haviam usando dois veículos, chamando atenção com o estardalhaço da van que saíra da cena do crime cantando pneu e furando sinais vermelhos adoidada. Silva apostava que a polícia encontraria a tal van em poucas horas, se é que já não fora encontrada, e há centenas de quilômetros dali.

Silva deixou o carro na rodovia, fora de vista. Saltou a porteira fechada a cadeado; parou um momento para examinar com a luz da lanterna as marcas de pneu na lama. A chuva fora breve mas intensa; um veículo passara pela estradinha esburacada depois do aguaceiro.

Desligando a lanterna e fechando bem o casaco de couro na noite úmida e gelada, Silva começou a correr pela lama.

***

Está difícil respirar, está difícil...

O mundo parou de sacudir...É um carro, eu estou dentro do porta-malas de um carro...Agora eu escuto o motor...um ruído suave, como chuva?,não: o carro saindo da estrada deslizando,suave, sobre cascalho?...até parar. Até o motor parar.

As portas do carro são abertas e fechadas com força. Ninguém diz nada...há apenas as pisadas no cascalho...pararam.

Abrem o porta-malas...não vejo nada, há essa luz dolorosa na minha cara, não vejo nada...eu quero apenas respirar, eu inspiro com força, expiro, inspiro...

E o mundo empretece de novo - eles enfiaram um saco na minha cabeça.

E eu quero gritar eu quero implorar pelo amor de deus eu quero respirar mas eu não consigo eu não consigo

***

Silva aproximou-se da casa da xácara pisando com muito cuidado no cascalho da entrada. Um só carro, estacionado logo em frente à varanda; nenhum cachorro latindo , o lugar deveria ser alugado. Duas pessoas na casa, apenas, pelo som da conversa.

Duas portas em lados opostos da casa, trancadas. As janelas eram gradeadas, as cortinas  estavam fechadas. A abordagem teria que ser direta, afinal de contas.

Silva tinha a vantagem relativa de sua aparência inofensiva: quarentão, baixo, calvo, de óculos, parecia mais um bancário. Bateu na porta da frente.

A conversa silenciou, nem sussurros, mas dava para perceber as passadas de uma pessoa indo em direção aos fundos - ao mesmo tempo em que porta da frente era desaferrolhada com brusquidão e aberta por um sujeito barbado de olhos vermelhos e arregalados, e uma mão escondida, além do batente.

Silva era só sorrisos, com as mãos nos bolsos do casaco.

"Boa noite - o senhor me desculpe a intromissão a essa hora  , mas é que meu carro enguiçou e não sei o que houve não é a gasolina não é a bateria nem o óleo e a bateria do meu celular acabou e o senhor quer saber de uma coisa?Que se foda."

Silva atirou através do casaco; o trinta e oito fez o trabalho porque a distância era curta, o sujeito ficou no chão , segurando a ferida na barriga, uma quarenta e cinco largada a seu lado. Olhou para a barriga, depois de volta para a Silva com uma cara de completa incompreensão.

Ainda sorrindo, Silva atirou em sua cabeça - ouviu de imediato um som de trancas de madeira caindo e de uma porta batendo numa parede nos fundos .

Encurvando-se, deu a volta na casa - viu um sujeito correndo na escuridão de um pasto, atirou três vezes, acertou quando o outro se enrolou todo,tentando saltar uma cerca de arame farpado. Aproximou-se calmamente , recarregando a arma. O sujeito estava imóvel, enfiado desajeitadamente na cerca como um fantoche descartado. Silva atirou mais duas vezes por precaução.

Voltou para a casa da xácara; não demorou muito a encontrar a moça, dentro de um armário.

***

"Eu...Me desculpe, Senhor Silva, mas é só isso. Mais nada."

"Tudo bem, tudo bem... Não se preocupe, a senhora me ajudou bastante. Muito. Já sei por onde começar, que caminho seguir. Já sei o que procurar e onde. A família da vítima ... Bem. Eu a agradeço em nome da família. "

"É. Eu sei , meu filho. Eu também queria que não fosse assim."

"Sim, bem. Ela tem asma. Parece que os sequestradores não sabiam desse detalhe."

"Eu... eu senti. É."

"A senhora tem mesmo certeza de que ela está morta?"

"Ah. Infelizmente."

"E... a senhora tem certeza porquê...?"

A vidente suspirou fundo, sorriu tristemente.

"Porque ela mesma me disse, meu filho. Porque ela mesma me disse."

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