Ataque e corra, ataque e corra, ataque e corra.
Sem cobertura, sem apoio, sem reforços:
Arrastando-se pelos corredores agora desertos do Hospital St.Anthony Para Veteranos de Guerra, esgueirando-se para dentro e para fora dos quartos e consultórios e salas de cirurgia. Como quando o tenente Roland Griffin era criança, brincando com a molequada do bairro nos terrenos baldios e prédios condenados que entulhavam a cidade. Como no Iraque.
Igualzinho: brincando de polícia e bandido, brincando de soldado.
Igualzinho: brincando de polícia e bandido, brincando de soldado.
Parando para ouvir - nada. Nem o deserto era assim, nunca, ou as cidades sob toque de recolher. Esse silêncio, esse vazio.
Procurando o inimigo invisível, que, no Iraque, estaria entocado nos prédios em ruínas - a infância dos moleques iraquianos de hoje - nos mercados, nas esquinas, em qualquer cruzamento.
Pregado à parede e às sombras, um canto de olho cauteloso ensaiando enxergar além do batente da janela: nada.
A cidade da sua infância, a cidade em que passara a vida toda - só saíra dali para cruzar o mundo até o Oriente Médio e voltar-, imensa e vazia na noite. Nenhuma luz nos prédios, nenhuma buzina ou motor, grito ou risada.
A cabeça começou a zunir de novo. Roland,olhos pulando da porta para janela, tateou às cegas pelos bolsos, os bolsos sem fim: os bolsos do impermeável, os bolsos da jaqueta sob o impermeável, os bolsos do suéter sob a jaqueta - os bolsos sem fim da calça militar, cadê a porra das pílulas, ele arrastara o rabo da sua toca quentinha até ali só para conseguir as malditas pílulas--
Calaboca e respira, fuzileiro.
Parando, tremendo, Roland tirou o gorro de lã que usava sob o capuz do suéter, catou lá de dentro o pequeno cilindro de plástico alaranjado chiando reconfortante macio baixinho como pequeno chocalho , seu conteúdo precioso--
Espera. Espera. Ainda não. Ainda não. Cabeça fria, moleque: mantenha o foco. Se tomar esse negócio agora, você perde o contato com a merda a seu redor, fuzileiro. Preste atenção na merda.
A culpa era do silêncio, a culpa era do silêncio. O tenente Griffin, condecorado por bravura em combate - penhorara as condecorações por droga e birita -, não sabia como se proteger contra o silêncio, não sabia como enfrentar o inimigo quando ele era invisível. Menos quando ele não era invisível.
A cabeça tinindo, Roland susteve a respiração : ao longe, baques compassados, aproximando-se, aproximando-se, o edifício começa a tremer ligeiramente - uma comadre cai com estardalhaço metálico de uma mesinha de cabeceira.
Tum,tum,tum -TUM. Roland , projetando apenas o perfil além da borda da janela :olhar de esguela .
Estava a três andares acima da rua: nuvens de poeira, em duplas,trios? poeira erguida dos detritos dos prédios semi-demolidos, o entulho que se espalhava com as carcaças de carros estralhaçados, semi-carbonizados - o rastro poeirento na noite mal iluminada pela lua, as nuvens de poeria que se inflavam e se dispersavam : terminava bem ali, em frente à entrada do hospital. O barulho parara de vez, as nuvens de poeira se assentavam, e nada havia ali.
E o nada começou a se distorcer, a pulsar, a ganhar corpo, e a gemer , ganir: como uma sirene à distância, aproximando-se, esse som agudo que arranhava o crânio de Roland, dáva-lhe vontade vomitar, eriçava todos os pelos do corpo.Como unhas arrando a lousa.
, e como um copo de vidro enchido lentamente com leite maltado:
Uma forma imensa, que chegava à altura da janela, materializou-se aos poucos no fim da trilha de nuvens de poeira. Deveria ser um máquina; parecia-se mais um bicho, só que fora de qualquer proporção: o corpanzil indiferenciado, compacto, no topo de três longas e segmentadas pernas. Não tinha carapaça, porém; fantasmagórico, transparente, como se feito de vidro e luz e cores apenas - como cristal, e pulsante. Uma água-viva em forma de caixa-d'água --
Era difícil explicar, era quase impossível encarar a coisa ; como o som lancinante, o próprio pulsar de sua matéria fazia os olhos de Roland doerem - aquele fogo e luz acabaram logo, porém: mesmo tremendo, nauseado,Roland segurou-se, manteve-se no lugar até que, terminada sua pausa vigilante, a forma gigantesca sumisse no ar novamente e se as passadas continuassem, afastando-se em sua patrulha, com seus baques mastodônicos e o rastro poereinto .
Como no Iraque. Como brincar de bandido e polícia, caubói e índio, cadete espacial e alienígena. Roland sentou-se no canto do quarto de hospital, tapando os ouvidos com força, o zunido aumentando , aumentando, aumentando dentro de sua cabeça.
***
"ELES VIVEM,VOCÊ APODRECE", fora a primeira coisa que Roland vira ao sair do túnel de metrô, pichado em vermelho vivo numa parede escura de imundície. As palavras soavam familiares, mas ficou sem entender aquilo; como deixara de entender um monte de coisa desde que voltara da guerra. Como deixara de
tentar entender qualquer coisa.
tentar entender qualquer coisa.
Roland fora ao Iraque para fugir das ruas da cidade; achava que brincar de soldado no Oriente Médio seria mais fácil que brincar de gângster em casa. Gozado: ouvira dizer que muitos "manos" voltavam da guerra para usar nas ruas as técnicas de combate que aprendiam, não nas forças armadas, mas observando o inimigo. Porque o inimigo sempre se adaptava. E "a gente" permanecia a mesma. Fodida. Bando de patinhos numa parada.
Roland certamente parecia um guerrilheiro muçulmano, agora: maltrapilho, imundo, desesperado. Negro,pobre, sem educação superior, sem jeito para ser esportista ou rapper: voltara para casa não sabia porquê, não havia mais nada ali para ele. Depois da guerra, não havia mais nada para ele em qualquer outro lugar.
Só nas ruas, talvez, debaixo das ruas, varrido para debaixo do tapete. Não havia hospital para veteranos que desse conta de todo soldado que voltasse para casa com "estresse pós-traumático" ; nem na cidade, nem em qualquer outro canto desse país.
Sem emprego, só condecorações, nenhuma recomendação. ao invés de gravitar, inerte de volta à velha vizinhança, às velhas rixas de território das gangues, Roland deixou-se ficar no centro da cidade, mesmo: largado nas calçadas, bebendo até fluido de isqueiro quando faltava a medicação e sobravam as dores de cabeça.
Tinha seu canto favorito e secreto,é claro. Seu refúgio subterrâneo, com que se deparara nas andanças sem rumo pelos túneis e reentrâncias do metrô. Era um abrigo anti-nuclear, singelo mas funcional,e sem dono, agora, há anos ou décadas sem receber visitas. Tinha acesso a um arroio subterrâneo e seu próprio suprimento de enlatados e biscoitos secos - Roland não sabia nada de prazos de validade, só sabia que sempre sobrevivia de alguma forma depois de se empanturrar com aquela merda sem gosto.
Aquele era seu mini-bunker e também seu arremedo de tumba faraônica. A última decisão séria que Roland tomara na vida fora a de que, algum dia, quando finalmente se cansasse de toda aquela bosta , ele arrastaria a carcaça fedida para aquele buraco, fecharia a porta e ficaria ali até seu corpo ser descoberto por arqueólogos do futuro, dali há milênios. Ou até nunca ser descoberto, de preferência.
Daquela vez, porém, estava apenas curtindo uma breve crise de consciência, ou apenas tendo um surto penitente,não importava. Ficara lá embaixo por pelo menos uma semana, com o gerador elétrico do abrigo desligado quase todo o tempo, resmungando e brigando e chorando com a escuridão e com as lembranças do Iraque. Até não aguentar mais a dor, as lembranças, o silêncio e decidir arrastar a carcaça fedida para fora daquele buraco, em busca de mais das malditas e preciosas pílulas.
E, quando finalmente saíra da escuridão, piscando até chorar para a luz mortiça da tardinha que caía rápido, teve a impressão nítida de que tinha ido parar de volta no Iraque. E quase se sentiu aliviado com a ilusão breve.
***
Será que o monstro invisível tem olhos de raios-x? Hmm?
Ataque e fuja, cara, ataque e fuja.
Roland estacionara a Conchita numa viela, ao lado da caçamba de lixo em que trepara para alcançar uma janela de banheiro e se espremer - ofegando pela má forma - para dentro do hospital. Ignorara as entradas normais por força de hábito, constatara depois, maldizendo-se, que todas estavam destrancadas: o Saint Anthony's fora evacuado - e revirado - como todo o resto da cidade.
Conchita era o velho e fiel carrinho de compras, guardião das tranqueiras inúteis e inestimáveis que Roland arrastava aonde quer que fosse. Arranjara até mesmo um cadeado de bicicleta para proteger sua querida mulita.
, que guinchava como uma filha da puta por causa das rodinhas enferrujadas, aquele som ecoando animalesco na viela, na cidade inteira deserta e morta,e Roland trincando os dentes para não explodir em palavrões, tendo que sacudir e virar e puxar em trancos o maldito carrinho cheio de merda até a borda, as rodinhas sempre giravam em sentidos diferentes e aquela bosta nunca seguia em linha reta e--Roland estacou logo depois de deixar a cobertura da caçamba de lixo: havia uma criança parada na escuridão, bem no meio da viela.
Uma menina, num vestidinho primaveril naquela noite dura de frio: quieta, muda, pálida, apenas olhando para o mendigo negro logo a sua frente, sem se importar, quase como se não o viesse, os olhos também mudos. De que cor eram?
,Roland não conseguia ver bem. A menina trazia aninhada nos braços uma boneca, ainda mais pálida que ela... Uma trouxa de roupas brancas? - um nenê enrolado numa toalha?...
, e Roland tossiu ao tentar soltar um "olá", por puro falta de uso da garganta, pela pura falta de uso de sua humanidade. Sorriu sem jeito, ficou sem saber o que dizer - ia perguntar dos pais da menina quando a trouxa começou a se agitar em seua bracinhos.
, extendendo uma série de patinhas articulas: como uma enorme e branca barata de estimação, virada de costas,
,exceto que sua cor não era branca, sua substância transparente, gelatinosa?apenas distorcia a palidez do vestidinho da menina
,e a barata gigante de estimação começou a pulsar em cores diferentes e sem fim do interior de sua transparência gelatinosa e começou a zunir como a sirene de ultra-frequência do monstro invisível enquanto a miríade de patinha agitava-se cada vez com mais vigor, quase ondulando sob o rostinho pétreo sem vida da criança.
Roland empurrou o carrinho em direção da menina (e Conchita rodou por dois metros e virou, derramando todos os seus tesouros) e saiu correndo pela viela, na direção contrária --
, trombando sem ver numa senhora , parada no meio da calçada. Levantou-se de imediato como se tivesse mola nos braços...parou no ato de se virar e continuar em disparada pela rua afora. Parou , idiota, olhando para a mulher a seus pés.
Ela não conseguia se erguer - não conseguia sequer se virar. Ficara ali, movendo cegamente os braços e pernas extendidos no ar ...como uma barata..como um brinquedo mecânico, quebrado:
os olhos parados, fixos no céu, sem piscar, a boca murcha abrindo-se e fechando-se lentamente, abrindo,fechando, abrindo, fechando, abrindo - ficando assim, travada, afinal: deixando passar, como um buquê, um feixe de tentáculos crivados de espinhos, da mesma cor indecisa do falso brinquedo de criança ...
Foda-se, minha senhora - dá licença, falou? Virando-se - sem ter sequer a chance de cruzar a avenida:
Vindo em sua direção, ziguezagueante como um bêbado. Um tira. A porra de um tira.
, as duas mãos extendidas,segurando uma pistola ; pistola e mãos atadas por uma confusão de espaguete semi-transparente, semi-pulsante, latejando com cor e luz - atados de forma assimétrica, por vinhas presas ao uniforme, à carne , à virilha do tira...e a seu rosto, que sumira: sob o cabelo loiro, como entre as pernas, uma confusão borbulhante e ativa, uma massa informe de onde se projetavam patas articuladas longas que eram também como tentáculos muito finos que eram também como uma mulditão de antenas--
Roland esqueceu-se de hesitar, dessa vez: berrando, disparou em direção ao tira - inclinando-se numa longa derrapada no instante mesmo em que o primeiro tiro era dado, a criatura incapaz de corrigir a mira a tempo - acertando o tira nas canelas, derrubando-o - sem coragem de tocar o sujeito caído, mas escoiceando no chão, mesmo, esperneando e urrando sem parar - arrancou a arma das mãos do tira aos chutes e, já em pé, não conseguiu nocauteá-lo mesmo chutando-o e pisando-o em todo lugar.
Afinal, ofegante: capengou até a arma caída longe, pegou-a com asco-parou para contemplá-la, tão limpa e funcional, entre as luvas sem dedos de suas mãos imundas...ouviu o som suave do tira erguendo-se a suas costas.
Não quis desperdiçar balas, muito menos esperar pela chegada de...reforços. Daí: mais uma viela, e outra, e uma terceira - e uma tampa de bueiro e a escuridão fétida mas protetora dos esgotos.
Difícil distinguir os sons da rua e medir sua distância lá embaixo, mas Roland sentia como se a cidade fantasma tivesse voltado à vida sobre sua cabeça; ela toda agitava-se, a sua procura.
Nítido, inegável foi o tremer da terra, os golpes compassados de bate-estacas que voltavam. Isso fez Roland desprender-se de seu cansaço e de sua tremedeira, sair tropeçando e chapinhando às cegas, genuinamente apavorado, dessa vez.
Desabou,deslizando lentamente sobre o apoio curvo das paredes, quando pensou ter finalmente reencontrado seu maldito silêncio. Deixou-se ficar, sentado na merda, ofegando cada vez menos, por um bom,longo tempo.
Por fim:
Saiu tateando-se novamente, como quem procura o maço de cigarros - encontrou o frasco com as pílulas no primeiro bolso em que fuçou. Instintivo. Ali.
Os olhos já melhor acostumados ao escuro: numa mão, o frasco alaranjado ... na outra, a arma do tira. Sempre estivera ali. Pronta. Ins-tin-ti-va.
Sua cabeça não doía mais; o zunido sumira. Na escuridão, apenas sua respiração, num ritmo regular, controlado.
Lançou o frasco longe, com força; ouviu-o quicando nas paredes antes de sumir do mundo, da sua cabeça, num espadanar naquela água imunda.
***
Ataque e fuja:
À luz limpa da manhã, as nuvens de poeira, brotando do chão como que de uma maria-fumaça subterrânea,constantes, podiam ser vistas há centenas de metros:quase antes do baque retumbante das passadas invisíveis.
E será que o monstro invisível tem mesmo olhos de raios-x? Se tinha, aquele não estava prestando no chão onde pisava, mesmo a rua craterada e entulhada daquele jeito. Não viu a mina terrestre; na verdade, uma só de uma pequena teia. A explosão apenas aturdiu a criatura, que perdeu o compasso, começou a se delinear em meio à fumaça e a chuva de detritos-logo atingida por outras explosões , em série, uma cascata, fogo correndo em pólvora em duas direções contrárias, uma explosão disparando a seguinte. A sombra do monstro já estava inteira à vista, dançando em meio ao caos das nuvens de poeira que alcançavam dezenas de metros de altura, quando foi derrubado pela avalanche de detritos do pequeno edifício que implodira a sua direita e, por fim, soterrado por outro edifício que desabava, a sua esquerda.
Roland observava tudo embevecido do alto de um morro há quase um quilômetro de distância, através dos binóculos de campanha , um entre os inúmeros brinquedos que catara cidade afora nas últimas semanas.
Aquele não fora seu primeiro ataque, mas fora o mais espetacular. Como os outros , fora apenas um teste para medir a velocidade de reação do inimigo - como os outros, não poderia repetir o truque. O inimigo sempre se adaptaria, mas ele também.
A trabalheira não fora em vão; afinal, como dizia o ditado, não dá para fazer uma limonada sem quebrar alguns ovos. Ou algo assim.
Restava esperar a chegada dos reforços...alguns aéreos, estranhas asas ao invés de turbinas e hélices...muitos, inúmeros, a "infantaria"..."recrutada"entre a população civil local.
Às suas costas, no matagal, aguardava Consuelo, sua nova e fiel mulita, cujas rodinhas Roland dessa vez deixava sempre bem oleadas e deslizantes...como deixava bem oleadas e limpas e prontas para o uso todas
as armas de seu seleto e reluzente arsenal, aninhado entre os mantimentos e outros brinquedos no bojo do carrinho de compras (esse mesmo repertório, com pequenas variações, repetido em esconderijos por toda a cidade).
Prontos para fugir e se esconder, e atacar de novo, em outra ocasião.
É, Roland pensava, enquanto trocava os binóculos por um fuzil com mira telescópica e se aninhava, preparando-se para algum tiro de ocasião. É, aquilo tudo dera um trabalho desgraçado. Mas, quem ligava.
Olhando através da mira, escolhendo um alvo entre os reforços que começavam a chegar, Rolando sorria largo. Não se divertia tanto assim desde que era moleque.
Um comentário:
É, rapazinho!
Você continua em forma. Seus textos são sempre ótimos.
Abraços
Postar um comentário