terça-feira, 18 de outubro de 2011

[treco] Cinco modos de lidar com o bloqueio de escritor

[Escrito para a Etapa X do Desafio dos Cem Dias (na comunorkutíca ESCRITA E ANÁLISE DE CONTOS) - Tema: LIVRE]



1.
ERRADO:
Ficar encarando fixamente o vazio, esperando a inspiração surgir de repente.
(variantes: ficar olhando pela janela; ficar olhando pra página em branco na máquina de escrever, no caderno de anotações, no progama de editor de textos.)

CERTO:
Depois de algumas horas fuçando sites pornôs na internet e enfrentando hordas de bárbaros e criaturas inumanas em jogos eletrônicos, o Autor decidiu que já se distraíra o bastante, era hora de voltar à labuta.
 
Levantou-se da mesa do computador, gemendo pelas dores nas costas, arrastou os chinelos e o mau-humor até o quintal. Verificou com cuidado as armadilhas para idéias (tinha instalado três por via das dúvidas), nem precisava dessa minúcia toda, via-se de longe que estavam vazias. E  o Autor podia jurar que vira uma ideiazinha pequena mas ágil voando para longe assim que abriu a porta da cozinha, tsc.

O zelo excessivo no exame das armadilhas era proporcional a sua frustração, é claro; não conseguiu entender bem o que fazia de errado. Aquelas merdas não vinham com manual de instruções – *achava* que tinha feito tudo certo, afinal.

Talvez se mudasse o tipo de isca ...Usava o que tinha à mão, via de regra: farelos e sobras de velhas histórias, alguns lugares comuns, enredos enlatados...

Tsc. E aquela sempre fora a melhor época para a caça!... Será que as malditas idéizainhas tinham mudado seus hábitos de acasalmento, sua dieta – será que estavam em vias de extinção!? Sabe-se lá,sabe-se lá:  nada mais é certo hoje em dia , veja só a crise econômica, olha só esse tempo esquisito que anda fazendo ...Tsc,tsc.

 
2.
ERRADO:
Tentar advinhar o que o público quer ler .
(variantes: tentar advinhar do que a crítica especializada vai gostar; tentar advinhar o que as editoras querem publicar.)

CERTO:

O Autor esfregou as mãos , cofiou a barba e lambeu os lábios para melhor arrendondar a imagem clichê de sujeito satisfeito. Acabara de instalar em seu pc as versões mais recentes (pirateadas) do Bibliobot e do Memevore, “agentes” que rastreiam as tendências do mercado editoral e os últimos modismos Rede afora e que depois remixam tudo em saladas narrativas fresquinhas ( segundo os parâmetros do freguês, é claro; exceto que, por preguiça, o Autor deixara os programas rodando nos módulos “default” e randomizador).

Calculou que teria uma hora antes que a primeira versão de uma noveleta original saísse do forno; pegou um gibi do Wolverine e foi dar uma barrão sossegado.

Depois, decidiu gastar o tempo restante largado na sala de tevê , zapeando e resmungando da falta de opções na programação a cabo. 

Estava prestes a fazer uma boquinha quando se lembrou dos programas rodando no velho pecê. Voltava saltitante de antecipação para o escritório no segundo andar (não poupando os tiques pervertidos de auto-satisfação de antes) quando foi atropelado na escada por um unicórnio montado por uma valquíria (talvez fosse uma amazona, o Autor não pôde ver direito, que seus óculos voaram longe) que disparava flechas flamejantes e canoras contra uma esquadrilha de naves espacias que a perseguiam rasantes, chispando suas rajadas laser.

O Autor precisou de alguns instantes para retomar o fôlego e de outros mais para encontrar o velho par de óculos, engatinhando pela poeira fina do deserto radiativo. Quando finalmente se ergueu ( gemendo das dores nas costas), demorou-se um cado procurando um ponto de referência  na vastidão desolada, a mão sobre os olhos para se proteger da luz do sol duplo. 
 
Descobriu no horizonte a mancha escura de uma nuvem de tempestade muito baixa, soltando raios sem fim sobre o solo, como se fossem raízes aéreas muito finas, e encimada por uma cidade esmeralda que era só torres e pináculos.

Dando de ombros, começou a se arrastar naquela direção, tentando se lembrar onde enfiara um maldito exemplar de Hitman, edição da Brainstore, onde foi mesmo que comprara aquela bosta...?

 
3.
ERRADO:
Ficar ruminando os comos e os porquês da (grande) obra que se escreverá algum dia.

CERTO:

O Autor ouvira distraído a pergunta do jornalista, na coletiva para a imprensa que se seguira à entrega de seu Prêmio Nobel de Literatura. Fez uma pausa dramática sob o silêncio atento da audiência e o pipocar dos flashes das máquinas fotográficas, tomou um longo e barulhento gole d'água, o tempo todo tentando entender o que infeliz perguntara naquele sotaque esquisito. 

Pigarreou ligeiramente, pediu desculpas, juntou as mãos, aproximou-se mais do microfone sobre a ampla mesa , ensaiando uma resposta evasiva, genérica, aérea, quando foi interrompido por um berro vindo da platéia. 
 
Sem saber ao certo se estava mais aliviado do que ultrajado, o Autor se levantou (gozado, nada de dor nas costas), apoiou-se sobre a mesa, tentou enxergar e entender a confusão que se estabelecera na multidão (gozado, não estava usando óculos).

Parecia... Alguém entrara em convulsões entre os jornalistas. Todos se juntavam para socorrer ou fotografar o surtante...quando outros gritos semelhantes começaram a vir de vários pontos do salão.

O Autor ficou de boca aberta enquanto via claramente, agora, que os surtantes sofriam uma absurda transformação enquanto gritavam e se contorciam. Seus corpos minguavam, secavam – via-se pele, carne, gordura borbulhando, sumindo ...restavam apenas esqueletos enegrecidos vestidos em trajes elegantes...que saltavam do chão ao fim de suas metamorfoses e atacavam os pobres colegas que se afastavam clicando suas máquinas fotográficas desesperadamente até sumirem sobre montanhas daqueles corpos secos e uivantes.

Aquilo era embaraçoso. O Autor se voltou para os membros da Academia Sueca com que dividia a mesa , esperando providências...apenas para descobrir os doutos senhores caídos de suas cadeiras: metade deles nos estertores finais da transformação macabra, a outra metade já começando a se erguer em suas novas e hediondas formas.

O Autor não sabia bem onde se enfiar. Assim que ensaiava uma escapulida discreta pelos bastidores, alguma figura carcomida e decadente se punha em seu caminho, forçando-o a recuar fazendo mesuras e pedindo desculpas. Desse modo, foi empurrado de volta a seu lugar de honra...dessa vez, encarando uma sala cheia das monstruosidades esqueléticas. Todas quietas, agora, e fitando-o ferozes. À espera.

E , desesperado, o Autor percebeu que não tinha nada para dizer.

Engoliu em seco – procurou o copo d´água: tinha tombado na confusão, o conteúdo derramado, agora, apenas uma mancha escura na toalha de mesa.

Limpou o suor da testa com uma das mangas do fraque cujo alguel lhe custara uma fortuna. Tomou  o microfone nas mãos – apertou os olhos e trincou os dentes com o ganido do fidibeque. Quando a zueira passou, pigarreou ligeiramente, pediu desculpas, fungou um pouco, abriu a boca para gaguejar que precisava ir ao banheiro mas que voltaria já já – foi interrompido rudemente pelo estribilo de um telefone celular.

O Autor acordou assustado no sofá de seu escritório; o som viera da rua, logo ouvia o fedaputa respondendo a chamada aos berros. Ficou sentado por um minuto ou dois, esperando que o bater do coração diminuísse – daí, deixou-se cair de volta no sofá desconfortável.

Ensaiava a volta ao sono quando ouviu as batidas tímidas na porta. Sempre deixava instruções expressas para não ser interrompido enquanto trabalhava – gritou um “Que é?!” mal-educado, em resposta... Ouviu um gemido baixo vindo do outro lado.

Sentou-se no sofá, repetiu o “Que é?” com menos força, dessa vez...o gemido veio mais alto,mais exigente. Aproximou-se lentamente da porta, colou a orelha na madeira: ouviu apenas uma respiração chiada, profunda mas irregular. Uma , não. Um amontoado.

Girou a chave de-va-ga..ri..nho...,trancando a porta afinal. Afastou-se lentamente, os olhos sempre fixos  na maçaneta, que começava a girar – ouviu um leve roçar de tecido a suas costas. Quando se virou, afinal, foi apenas para levar uma mordida no pescoço de mais um Clichê Morto-Vivo.


4.
ERRADO:



...
Hã...

...hmm...

...
[psiu]

[ei , psiu]
?
[É , você.
Quer uma dica?]

!
[Sempre faça backup de seus arquivos de texto, idiota!
E não jogue ideias fora, nunca, só se forem muito velhas e, vê lá , mesmo assim, pense bem.
Você *nunca* sabe quando vai precisar de um estepe.]


5.
ERRADO:
Seguir receitas prontas.

CERTO:

O Autor se oferecera como cobaia no experimento de viagem no tempo porque estava cansado de esperar: queria saber de uma vez como se pareceria sua “grande obra” ao invés de passar anos tentando concluí-la.

Estava se cagando para os riscos e consequências da merda toda – assim que se materializou no futuro próximo, correu para a livraria automática mais próxima, encontrou sua grande obra no catálogo eletrônicou, imprimiu uma cópia fresquinha (pagou com o que trazia na carteira, mesmo, que a inflação não existia mais), começou a folhear freneticamente o grosso volume antes mesmo de sair da loja.

O que o Autor não previra era que,no futuro, um escritor é alertado imediatamente sempre que um exemplar de obra sua é downloadado(culpa das políticas severas de controle da propriedade intelectual que salvaram a
economia mundial); enquanto caminhava absorto em sua leitura, não percebeu a aproximação de um aerocarro, que logo pousou no gramado a sua frente (no futuro não há carros nas ruas, que são todas alamedas densamente arborizadas, ladeadas por faixas para pedestres) e de onde saltou um coroa bem enxuto.

O coroa bem enxuto aproximou-se célere como um atleta do distante Autor, despertando-o de seu transe literário com um grito: “Bicho!!!”

Assustado, o Autor ergueu os olhos das páginas de sua grande obra... para deparar-se com uma versão madura de si mesmo logo a sua frente, aliás, madura e em melhor forma que  o próprio, meio encurvado Autor (porque nerds são assim: gente normal acha que era mais legal no passado; nerds acham que serão mais legais no futuro). 

A versão futura do Autor parecia alarmada; segurou com firmeza os ombros de seu eu jovem (porra...esse fedaputa parece mais alto...e não precisa de óculos, caralho!) e estava prestes a lhe transmitir alguma mensagem grave...quando o Autor sentiu aquele vazio no estômago, indicando que o experimento temporal estava no fim e que ele estava sendo puxado de volta para seu presente.

Viu espantado sua versão futura e bacana sacudindo debilmente os braços no ar, tentando agarrar sua forma insubstancial...antes de sumir, ouviu-o gritando, desesperado, tentando alcançá-lo:

“Cara! Cara!!! Leia esse livro com atenção, leia essa merda toda com muita atenção...”

É claro que ele faria isso, o Autor resmungou pra si.

“...e escreva o completo oposto disso aí,...!”

E a conexão foi interrompida.

O Autor não ouviu direito a palavra que seu eu futuro disser epois daquele última vírgula subentendida...mas tinha a certeza quase absoluta de que era um palavrão.

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