quarta-feira, 15 de setembro de 2010

[conto] do lado de lá

DO LADO DE LÁ

(Infância.
Adolescência.
Escola/trabalho.
Vidadulta.
Marido/filhos.)

, pronto! Ana terminou o traçado meticuloso no chão (dedos já doridos de concentração), guardou no bolso do casaquinho o giz quase todo gasto, coitado, veterano de outros jogos de amarelinha. Bateu as mãos, limpou o resto do pó no vestido (esquecendo-se que a mãe iria ralhar quando visse aquela sugeira toda ), contemplou com orgulho o trabalho feito.


]E aí, nada: olhou em volta, Ana bem no meio da praça (a praça, bem no meio da cidade), mas ninguém a vista, os gritos da molecada à distância jogando bola ou queimado. O fim de tarde solitário e friorento: Ana sentou-se no chão, anuada, fazer o quê, senão brincar de jogo da velha com o toco de giz velho e com seu chateamento.
Não que houvesse muita gente na fila para brincar de amarelinha com Ana, mesmo com a praça cheia. A menina aprendera o jogo e tomara gosto pela coisa com a avó, a pessoa mais esperta que conhecia (nem mesmo a mãe ou as irmãs mais velhas tinham paciência para a brincadeira), mas agora era hora da novela, a vó não despregaria os olhos vivos da televisão... e também os ossos cansados da cadeira de balanço, a falta de força e fôlego pros saltos num pé só...
Suspiro: os "X" venceram os "0" ,de novo- fazer o quê, né: começar mais uma vez.
"Oi ...posso brincar também?"
Não era voz de criança que assim assustava Ana - muito menos, a voz da avó: ainda que fosse uma velhinha(opa: "uma senhora de idade", olha o respeito , menina!) que falasse.
Não se parecia em nada com sua avó, de fato: encurvada, sim, mas o casaquinho e o vestido pareciam fora de lugar:como que vestindo um manequim de criança com o formato errado...adulto se fingindo de criança...criança enorme mas que não chegou a crescer direito...
E sem bengala, também, e sem peruca mal disfarçada na cabeça pequena - sem dentadura? não dava pra ver bem, da boca, apenas um sorriso esticado que enrugava tudo mais ainda naquela cara pequena.
Sem óculos, e os olhos enfiados fundos no rosto: só o brilhinho feio, de vidro, parecia. A senhora quieta e dura, sem se aproximar: logo do outro lado do traçado no chão. Sem arredar pé. Ana não gostou nada daquela senhora que surgia do nada no meio da praça, chegava perto, de mansinho, feito cobra. Mas cobra não anuncia o bote, anuncia?
Cobra cascavel, sim.
"Uai, menina, mas não vai dizer nada? Que feio! Como se chama,hein?"
Ana enrolando a língua como se tivesse uma pedrinha dentro da boca. Calava de vergonha tímida, mas de medo também (olhando em volta: ninguém mais a vista). Nunca vira a mulher antes e mesmo uma alma caridosa como sua avó sempre a alertava sobre conversar com estranhos - e não importava que aquela pessoa se parecesse com uma senhora frágil e inofensiva:ela continuava sendo muito estranha.
"Eu sou Zinha" , disse a estranha, não como quem dissesse o nome, mas sim a profissão,o título, o cargo ... a raça ou a espécie de bicho que era.
Ana fez um movimento súbito de fuga - e a Zinha o refletiu,em sentido contrário,mais rápida que uma galinha. Sempre sorrindo: a menina parou,gelou por dentro. Sabia que não podia correr: as duas se mirando através do eixo do diagrama traçado no chão, como se brincassem de pique-e-pega ao redor de uma mesa.
Ana esqueceu todas as rezas que sabia.
"Ah, você gosta de amarelinha...Eu também. A gente vai brincar, então.
"Você primeiro,menina.
"Quando errar, tomo seu lugar."
Ela disse " quando errar" , não "se errar". E não disse "será minha vez", disse "tomo seu lugar". Como se a menina perdesse não só a vez.
Ana, vencida, antes mesmo de começar o jogo. A "malha" à mão era o pedaço de giz no bolso do casaquinho. Jogou-o, começou a pular sob o sorriso e o olhar morto da outra, a sua espera, lá no fim.
Primeira casa: infância.
(...a vida equilibrada entre as brincadeiras e as obrigações - mas as brincadeiras tinham regras, e as obrigações tinham compensações. Se ela mantivesse o equilíbrio,não pisasse em falso. A leveza transformada em peso se não prestasse atenção.
...se caísse, a Zinha a pegava)
Chegando ao fim da trilha, girando, voltando: concentrada, não precisava olhar para a Zinha - mas sentia seu cheiro.
Primeiro , o cheiro de coisa velha guardada no fundo do armário. A Zinha cheirava toda a naftalina.
Depois, mais fundo: o cheiro de coisa podre, disfarçado, mas mal. Cheiro distante mas bem visível: urubu voando em círculo no céu.
Segunda casa: adolescência.
(...as comportas abertas: a dor e a vergonha do mênstruo... mas a liberdade...
O cheiro de sangue atraia os lobos, mas poderia dominá-los, ora essa: era uma *mulher*, agora.
Senão, eles a devorariam inteira.
...na cabeceira da mesa, a Zinha,aguardando o prato principal.)
Indo e vindo,diagramacima, diagramabaixo:completando o circuito, mais uma vez.
E dessa vez teve rápido vislumbre da adversária: parecia... menos arqueada?... menos seca e enrugada?
Mais o cheiro,diferente: o bafo podre parecia melhor disfarçado. Perfume barato e chicle-de-bola?...
Terceira e quarta casas: escola/trabalho.
(...a menina obrigada a crescer - esticada , puxada em sentidos contrários por essas duas forças.
Senão, fortalecida, ancorada nesses dois bastiões. Se fosse bem sucedida, conquistaria sua vida.
Se fracassasse, uma Zinha tomaria seu lugar.)
Um ou o outro? Duas voltas no diagrama, de qualquer jeito.
E, ao fim da segunda, deixou-se vencer pela curiosidade,deu uma olhada melhor na outra, e se arrependeu.
A Zinha não só tinha se aprumado de vez como tinha remoçado um monte de anos,apenas uma cinquentona,agora.
Pior: só então a menina notou a mudança de perspectiva. Olhava a outra na cara,agora (ainda evitava aqueles olhos de um brilhozinho gelado). Estavam as duas da mesma altura: a garota havia crescido.
Quinta casa : vida adulta.
(...ou cume, ou  precipício.
A vida de verdade... ou um plano de aposentadoria?
Cadê seus planos , seu sonhos?
Qual é mesmo o seu nome?
Zinha espera satisfação,impaciente, a patroa de sua vida.)
...cansada. cansada,cansada.
Seguindo seu caminho, automaticamente. Sem forças para se preocupar com a outra...mas jurava que a ouvia tagarelando alegremente num telefone celular.
Sexta e sétima casas: marido/filhos.
(...duas bolas de ferro presas a seus tornozelos ... ou duas asas imensas, esplêndidas , brotando de suas costas?
Zinha estava ao pé de seu leito de morte,esperando receber sozinha toda a herança.)
Arrastando-se:tudo mais rápido, ela, mais lerda, e dolorida.
E, no fim? o começo, os dois extremos.
Do lado de cá, uma velha arriada. Do outro, uma menina com um sorriso cruel congelado na cara - aquele brilho malvado piscando mesmo através da neblina da visão ruim. A velha de cá mal enxergando o giz colorido na palma da mão dura,fina,trêmula.
Oh, a brincadeira não havia terminado, mas, se insistisse, perderia , perderia tudo. A outra já se via vitoriosa, é claro. Enxergava logo adiante não uma senhora de idade, mas uma velha coroca, apenas. A velha? Bem, diante de si o passado nostálgico... e lá, distante,uma outra imagem - um sonho. Como menina, tinha uma imagem clara do outro lado da trilha da vida - um exemplo querido. Na tardinha de sua  própria vida, ela adoraria ser como a avó.
E a avó era a pessoa mais esperta que ela conhecia.
Se jogasse o jogo da Zinha, perderia pelas regras viciadas dela. Não,senhora.
"Cansei."
"É o quê?"
"Fica para outra vez,meu bem. A tia tá cansada."
"Como é?-nem vem, joga logo duma vez"
"A tia tá meio velha pra isso. E você já é bem grandinha..." e a velhinha deu meia volta.
"Volta aqui, velha coroca!"
"...pode muito bem jogar sozinha" e lançou a pedrinha de giz sobre o ombro.
Sentiu o movimento precipitado da outra a suas costas, em seu encalço - ouviu o berro de dor da Zinha por ter cortado caminho através do diagrama:pisando no traçado.
A velhinha voltou-se sorridente, fez o caminho mais uma vez, tranquila,agora. Chegou ao fim uma menina,novamente,que catou seu pequeno tesouro de um monte de pó fino e sem cor que o vento espalhava sem fazer força.
"Eu sou Ana, muito prazer."
Ela tinha o giz,uai. Nunca deixaria de jogar, mas nunca deixaria que os outros lhe ditassem as regras.
Pé,pé , pá-pá - pum!e pronto .

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