sexta-feira, 24 de setembro de 2010

[mini-conto]monstro da semana: batata de sofá

MONSTRO DA SEMANA:BATATA DE SOFÁ

Os brotos têm um ciclo de vida anfíbio: sua forma larval é livre e ágil, quase uma rosa em botão , sem caule e  arrancada do solo, com a cauda típica,ramificada e o corpo globular e vítreo, envolto numa capa retrátil, dupla, de bordas ciliadas.


Permanecem ociosos , flutuando pelo habitat natural da espécie até o momento do enxerto, que se dá nas madrugadas silenciosas: nessas ocasiões, os brotos saltam das pequenas poças luminosas e chiantes de telas de tevê mal-sintonizadas e penetram no corpo de seu hospedeiro, que dorme a sono solto a sua frente, através das narinas que se inflam e desinflam e das bocas abertas em ressonar contínuo.

O hospedeiro jamais nota a presença do visitante insubstancial; o broto, por sua vez, inicia quase imediatamente o processo de colonização do novo meio.

Desde o momento do enxerto, o hospedeiro passa, inconscientemente, a dispender um tempo ainda maior em frente à tela de tevê.Começa a inchar visivelmente, alimentando-se quase exclusivamente de lanchinhos industrializados de valor nutritivo duvidoso mas que contribuem de forma marcante (junto ao reforço de seusmodo de vida sedentário) para o acúmulo de gorduras, essenciais para o broto em seu processo de multiplicação.

Já um tanto estupidifcado pelas alterações orgânicas, o hospedeiro não tomará medidas contras a nova e incessante coceira (seus hábitos higiênicos, já em franca decadência, para completar o quadro da colonização); nem perceberá quando as erupções se abrirem, piscantes, em olhinhos brilhantes e vivos, revirando-se em todas as direções, por toda a extensão de sua pele.

Mas logo, e um a um, os novos brotos saltarão do corpo do hospedeiro de volta ao mundo fantasmagórico de onde veio seu pai-mãe, para dar continuidade ao ciclo ecolôgico de sua espécie. Depois de algum tempo, o anfitrião estará completamente livre dos hóspedes não-convidados. Provavelmente, sentirá um grande alívio, sem saber porquê.

É possível, porém, que sinta ao invés uma imensa aflição, um vazio interior, e passe a zapear de forma febril as dimensões eletromagnéticas de seu televisor, sem nunca saber o que procura, sem nunca entender bem o que lhe falta.

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