segunda-feira, 27 de setembro de 2010

[mini-conto]monstro da semana:cuca 2

MONSTRO DA SEMANA: CUCA II

A velhota não brincava de "cabra cega", mas, sim , de "cobra cega".
; o humor seco e áspero, sem graça - sádico. O sorriso venenoso.
Sentada no chao da praça. Terminado o jogo de bola de gude, a boca desdentada se contrai num "o" enrugado de esfíncter:de dentro daquela toca sai, serpenteamente, língua longa e escura, que baila pelo ar até chegar ao chão, envolve todas aquelas pedrinhas redondas e coloridas, carrega todo o butim de volta para a boca da velha.
Goela abaixo: a velhota faz força pra engolir, a careta logo congelando-se no rosto em máscara de sorriso. A longa linha da boca, seca, gretada: encimada pelas órbitas oculares mais ocas que a boca sem dentes.
As pálpebras murchas e finas se fecham, como que coladas,unidas numa só membrana ( lagarto piscando):o papo da velha se agita como se estivesse deglutindo algo esquecido ; daí as pálpebras pulsam como pequenas bexigas , inflando, desinflando, inflando - abrem-se de uma vez só, mostrando um par de belos, profundos olhos negros.
Um cado desalinhados, talvez; a velhota abaixa a fronte, ergue as garras duras finas das mãos até as vistas, ajeita ajeita ajeita - ah, melhor.Satisfeita, afinal: ergue-se gemendo, esticando-se toda, pára no meio da estirada no ápice, farejando. Desprende mais uma vez a língua-chicote que se agita, solta, lambendo o ar, farejando melhor que o nariz ínfimo. Engole a língua de volta, relaxa e conclui a estirada do levantar-se gemente; daí olha para um lado, olha pra o outro - ali, do lado de lá da praça: uma menina solitária desenhando algo no chão, e concentrada, concentrada, a mocinha.
Volta a máscara do sorriso morto. Coça a barriga, não de fome ou mesmo de satisfação: é que a cicatriz no ventre pinica.
Nascida de um ovo, a velhota nunca teve umbigo. Então, fez um pra si mesma: um corte costurando apartir do qual arranca fora sua pele quando chega a hora da muda, quando aparece coisa melhor com que se vestir.
Antes de ir ao encontro de sua nova amiguinha, a velhota olha uma última vez para seu último companheiro de brincadeiras e então se afasta, sem se despedir. Às suas costas, o menino se arrasta pelo chão, chorando baixo, tateando, tateando, tateando: buscando o belo par de olhos que apostou e perdeu.

[prequência a "DO LADO DE LÁ"]

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