quarta-feira, 30 de março de 2011

[conto] febre

FEBRE
[escrito para o concurso da SÉRIE VII DEMÔNIOS  - vol.3 Asmodeus/Luxúria]

Miss Smithsville, 2007:
Joan chorando no palco , a maquiagem escorrendo,manchando aquele rosto de sorriso luminoso, o pesado ramalhete nos braços, a faixa cruzando o corpo jovem e já bem delineado, a coroa na cabeça de cabelos castanhos fartos, brilhantes. O maior momento de Joan.
A foto emoldurada: posta de volta em seu devido lugar, o lugar de honra sobre a lareira. A mãe limpa algumas lágrimas discretas, assoa o nariz no avental de cozinha; o pai pigarreia, sua reação emotiva básica.
O maior momento dos pais de Joan; e a foto emoldurada fora tirada do lugar da infâmia no fundo de um velho armário, a poeira espanada com cuidado , o pequeno monumento devolvido a seu singelo altar: porque Joan estava voltando para Smithsville. Sua filhinha querida estava voltando para casa.
Joan - aliás, "Gina Spice": encarando-se num espelho sob a luz fria do banheiro de motel beira-de-estrada. O rosto sem vida - sem maquiagem-sem calor, a não ser nos olhos; encovados, duas minúsculas gemas de brilho intenso. "Intensa": era assim que a chamava seu antigo empresário - aliás, "agente"-, quando Gina era apenas Joan. Já seu cafetão - que transformou Joan em Gina- a chamava de "quente". Nomes, adjetivos que emolduravam,vendiam Joan,Gina em sua vida única, carreira dúplice de atriz, abortada em prostituta . Joan encarando-se no espelho.
Lá fora, as luzes, o estrondo dos caminhões que passavam a todo minuto. Na cama, um perfeito estranho resmungava em sono inquieto,ensopado de suor, seu cheiro gosto engordurando o lugar e Joan: tomando o apartamento uma pequena sauna.
O calor; o aparelho de ar condicionado que zunia inutilmente. A tevê ligada, o som baixinho: o caos em Los Angeles. Cenas de guerra nas ruas:tropas de choque, gás lacrimogênio, canhões de água.Tudo tão familiar: o locutor agitado fala nos distúrbios de 65, de 92, história,passado longínquo. Tão familiar. Todos dizem o mesmo. A culpa só podia ser da onda de calor.
Joan sai silenciosa, obrigada a ser discreta quando necessário, regras do ofício. Sai sem se despedir - sai sem bater a porta. Quase não dorme mais, não sente falta ; não sente falta, ao menos, dos sonhos febris,avermelhados.como luz filtrada através de lençóis de cama.
Quer seguir em frente, sempre, mesmo que não em linha reta , mesmo que não tenha realmente muita pressa em chegar . Sistematicamente: viajando de L.A. a Smithsville de carona e dando para todos os seus caronistas,sem exceção.
Não contava : como nunca contara os "casos" da primeira carreira, os "clientes" da última. Sem nome, às vezes sem rosto. Nem todos, nem sempre, porém.
Houve o agente - seu primeiro cafetão- , Thomas, Tom. Houve o cafetão - seu primeiro,verdadeiro empresário - "Trevor Long"-ou apenas "Danny". Houve um primeiro, antes deles, muito antes.
E houve "Bill". Que se apresentou apenas como "Dr.White", a princípio: quando descobriu Joan-Gina no hospital, recuperando-se da última surra tomada de Trevor-Danny-Boy.
Atencioso, gentil, o "Dr.White". Paternal.
Sequer trabalhava no hospital, porém. Estava de pasagem; tinha "amigos" ali. Gentil e atencioso, mas só queria o corpo de Joan, é claro. Dessa vez, em nome da ciência.
Ofereceu-lhe trabalho, ou quase. Testes clínicos bem remunerados e "perfeitamente seguros" de um novo produto contra, bem. Todos nós precisamos de proteção cada vez melhor,não é, cara Gina. Por que não, Dr.White, por que não.
"Ora, pode me chamar de...Bill."
Posso chamá-la de Joan?
Não,não pode.
"Bill"representava uma conceituada empresa farmacêutica - "doravante, denominado 'Contratante' ". Joan foi apresentada aos advogados da "Contratante", membros da firma Senoy&Sansenoy&Semangelof e pareciam todos nervosos demais para um pequeno cardume de tubarões de carreira. Exigiam uma certa discrição quanto a todo o negócio - ao que "Gina" respondia passando um zíper imaginário sobre os lábios, e todos os presentes fingiam não entender a ironia no gesto, enrubescendo .
Joan,a princesa da discrição:aceitara a grana sem fazer maiores perguntas - uma profissional entre profissionais.
Os "testes" foram mais longos - e cansativos - do que o prometido, mas Gina-Joan aproveitaria bem o tempo longe das ruas,longe de "Trevor". Gozaria daquele descanso trabalhoso imergindo em sua fantasia masturbatória predileta, o jogo de auto-ilusão em que ela planejava juntar grana o bastante para sair de vez "daquela vida"...
Sair daquela vida e ir para onde,afinal?
Os pais de Joan abriram a porta da frente certa manhã para emcontrar a filha e uma enorme e antiquada mala plantadas sobre o tapete de boas-vindas:um cãozinho que se perdera do dono. Os abraços breves, as saudações enfáticas e lacrimosas, os gestos de preocupação esperados - "meu deus, como você está quente, minha filha, está resfriada?"
A falta de jeito.A conversa mole,diplomática,sobre o calor infernal, sobre a situação pavorosa que estava se estabelecendo por toda a Costa Oeste - e a tentativa de comunicação acabava bem aí, em frente à placa que dizia "LOS ANGELES-LIMITE DA CIDADE". Como se aquela babilônia houvesse afinal afundado no oceano depois do Grande Terremoto,sempre esperado,punição divina inevitável. A absoluta recusa em admitir o que se passou ou o que poderia ter se passado naqueles anos de ausência.
A negação absoluta: os pais forçando Joan a sentir-se bem-vinda ao lar "como se nada tivesse mudado em todo esse tempo". O quê,de certa forma,não deixava de ser verdade.
Tratada como uma princesa... "sua princesinha". Bill e sua equipe cuidaram muito bem de Joan durante sua estadia no laboratório,seu novo, asséptico,agitado lar. Aquela hospitalidade toda sofreu um certo abalo ao fim do terceiro mês de internação,porém.
Joan começara a apresentar "...alguns sintomas inesperados", Dr.Bill hesitara em dizer,imediatamente se arrependendo de tê-lo dito."Sintomas"? Como assim,"sintomas"? Joan não estava doente, estava?
Estava?
Como alguém que não toma a temperatura de si mesma, Joan percebia apenas confusamente seu estado febril. Ainda que se sentisse queimar,queimar, sim,sim, arder em chamas mística joana do arco ogival duplo entre as pernas ardendo empalada entrando em êxtase santo - queimando:queimando lá em baixo, onde é o inferno.
Mas isso não era ruim, afinal de contas,era?
Bill e sua equipe achavam que sim.De princesa mimada em suíte presidencial no topo da torre de marfim corporativa, Joan passou a princesa prisioneira em cela no topo da torre mais alta do castelo da madrasta.Mas, tudo bem, Joan não deixara de ser profissional como uma gina.
Trepou seu caminho para fora da "quarentena";trepou e trepou seu caminho para fora de L.A. e além. Antes,porém:
Encontrou o furioso Trevor - já com uma nova "namorada"-evitou novo espancamento com a promessa da grana do último "trabalho" e com uma boa trepada de reconciliação. Na verdade, uma trepada de despedida: Joan foi embora discretamente,sem bater a porta,sem deixar a grana na mesinha de cabeceira,mas,ainda assim,não sem deixar um presente.
Procurou os sócios da Senoy&Sansenoy&Semangelof, trepou com todos. E então buscou o gentil e educado Dr.Bill White.
"Bill" estava absolutamente apavorado com aquele reencontro, mas acabou relaxando,forçado pelo encanto e profissionalismo e fúria passional genuína de Joan: enquanto resfolegava,gemia,urrava,chorava,implorava,Bill contou sua história, falou de *seu* presente para Joan.
Falou de Ciência.Falou de coisas primais,nada científicas. Falou sobre flores e abelhas - sobre aquele impulso básico de tudo o que é vivo: crescer e multiplicar. Todo ser vivo era guiado por essa força que poder-se-ia dizer divina!Procriar, gerar nova vida, mais vida,mais,mais,sempre mais,cada vez mais - incêndios se alastrando em matas secas nas colinas de l.a.-esse fogo interior inescapável.Guiava todo ser vivo:guiava o pináculo da evolução que era o homem...guiava a forma mais baixa de vida, que era um vírus.
Fazer A Melhor Máquina de Multiplicar , era só o que Bill e sua equipe queriam. A máquina,microscópica, era tão boa que não cabia em sua placa de petri. Não cabia nem mesmo num hospedeiro como Joan.
O vírus gerava milhões de filhos por dia; contava com Joan para que suas crias encontrassem novos territórios, hospedeiros,parceiros em que poderiam, por sua vez, "crescer e multiplicar", cumprir o ciclo e torná-lo cada vez mais amplo.
Ensopado de lágrimas e suor, tremendo de calor, desmaiando de exaustão: Bill despediu-se de sua cria, sua filha, sua obra-prima imprevista com um beijo frio na testa.
Eu te batizo com fogo: Joan Frankenstein.
Amém,meu bem. “Que assim seja”.
Inquieta,ardente,insone Joan: deitada em sua velha cama, em seu velho quarto,a velha casa de seus pais.Olhando para o teto sem conseguir enxergar nada,sem conseguir imaginar nada; sem escapatória.
Como antes,como sempre fora. Aguardando,sem ter para onde fugir:
Esperando,desesperada,o som inevitável dos pés descalços no corredor- o corpo pesado fazendo ranger as tábuas do assoalho - a porta de seu quarto abrindo-se lentamente, sem uma batida sequer, sem um ranger:que papai sempre lubricava essas dobradiças. Papai nunca ia dormir sem antes dar um beijo de boa-noite em sua menina. Em sua princesinha.
***
Durante seu breve retorno a Smithsville, Joan conteve-se,dolorosamente:teve relações com apenas uma pessoa. E, ao final de uma semana, a cidade inteira estava infectada.
Ou quase toda ela: enquanto arrastava sua pesada mala em direção à interestadual, Joan passou pelo apresado Padre Cronenberg, que a cumprimentou distraidamente. Ele estava avermelhado,esbaforido,mas não tinha os sinais óbvios da contaminação,como o brilho ardente no olhar: naquele momento,era apenas um pobre homem de deus que se revezava como esquadrão de combate a incêndios de um bombeiro só, correndo por toda a cidade,tentando acalmar sua congregação aparentemente endemoniada.
O padre era canadense; sua passagem deu a Joan a idéia de mudar a direção de sua viagem, trocar o rumo leste pelo norte. Ir cada vez mais para o norte, sempre.
Perder-se nas geleiras árticas como um monstro de frankenstein,com sorte. Tentar apagar o fogo dentro de si com todo aquele gelo e escuridão,acolhedores,eternos.

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