quinta-feira, 14 de julho de 2011

[conto-curto] Garganta seca


O segredo estava na água, murmurava o Matias, meio fora de si de secura, de abstinência, para as paredes mofadas do quartinho que fazia de única cela na delegacia. logo o murmúrio tornava-se berro e, se tinha forças, o Matias se erguia do catre duro e esmurrava a porta, xingava, chorava, deitava-se de novo, ria-se. E ninguém dava a mínima.

Não era a sua primeira vez no xilindró, mas era a mais dura, a mais longa - quanto tempo? Matias ia  ao banheiro ali mesmo, no penico já cheio. E ninguém o ouvia,ninguém respondia,nada de comida,nada de água. É, estavam dando uma dura no Matias. Para o seu próprio bem, o delegado haveria de repetir,fedaputa.

O segredo está na água, seu delegado, ria-se o Matias. Até o doutor comprava sua pinga, todo mundo, era a melhor da região, sem discussão! - todo mundo bebia da sua pinga. principalmente o Matias.
 
Beber, bebia. Bater, batia - mas quem não bebe, e quem não bate na esposa e nos filhos de vez enquanto? Hein?

Mas não. Sua cunhada enxerida viera chorar na delegacia, que a irmã e o sobrinho tinham sumido, que o Matias só poderia ter feito ruindade. Foram lá ver essa história - sumiram, só o Matias, escornado num canto do casebre, caído de tonto, de novo. Balde de água fria, Matias despertou só o bastante para chorar um cado e gemer que a desgraçada da mulher fugira mais o filho, daí o vômito. Toca a arrastar o infeliz para a delegacia, pra secar - "pro seu próprio bem" - enquanto alguém ia ver aquela história direito. Só porque assim, porque o pobre, de vez em quando...! Era honesto,ele, perguntassem a qualquer um.

Mesmo assim, ninguém lhe dava sossego, não, não para o Matias . A Zilda e o filho, sempre enchendo. Daí, aquele povo lá, da Zoonose, Saúde Pública, o escambau: mexendo no seu pobre laguinho!, ali, a água que era o ingrediente secreto - que ele contava pra todo mundo, alardeando o produto seu alambique, de primeira, seu doutor, de primeira...

As fazendas vizinhas, as criações de todo tipo que apareciam adoentadas,ninguém explicava porquê nem por onde - quanto muito, havia pra ver aquelas marcas esquisitas,redondas ,feias feito chupão, só podia ser morcego,mas nem, ali não havia não.

O laguinho,então.O pobre laguinho só dava água, nem pernilongo ou borrachudo, quanto mais peixe - mas, envenenado? Ele próprio era a prova do contrário! E a clientela, uai; até a esposa e o filho tomavam banho ali...até...É. Talvez os dois andassem um pouco fraquinhos, mas, ah.Ele Matias continuava ali,duro,então?Então nada,ora essa.
 
Sim senhor, seu doutor. Uma dor de cabeça atrás da outra, que nem essa ressaca, essa secura toda - pior,mesmo. Mas ao justo,justiça: testaram a bendita da água, de novo, e de novo, e nada - haviam alguns "sais" diferentes, esse povo da cidade resmungava, sem explicar direito,mas, pelo que Matias entendia, isso só tornava a água mais sadia - melhor para o seu negócio, ora essa.

E então.Pois é.

...e essa cabeça que doía,essa secura ... Matias voltou à porta,voltou à choração - dessa vez, houve respota.
Era pouca, mas era:um arrastar de pés, preguiçoso, lento - chamava, o Matias, insistia,mas ninguém respondia, só se arrastava, mais, mais perto, devagar.

Parados,agora,do lado de fora. Mexendo na porta, mexendo nos ferrolhos,mexendo,mexendo. Um cheiro engraçado,vindo lá de fora, que fez Matias recuar, calar a boca.Cheiro de peixe.Cheiro de...

A porta destravada,aberta num estalo.

Matias não via bicho quando estava seco;também não via fantasma,nunca vira - até agora, quando via as duas coisas.

Os dois, ali parados na porta: de mãos dadas. Cheirando a peixe, meio cobertos da sujeira do fundo do laguinho. O filho, ainda com a pedra amarrada no tornozelo fino. A esposa,não,ela afundara sozinha porque cheia , prenha d'água, que ele a afogara.

Os dois fantasmas,então:e os bichos.

Agarrados àquelas peles azuis - muito mais vivos que as duas figurinhas mirradas, caladas,imundas. Pulsando pulsando pulsando, aos montes:como que bombeando alguma seiva maldita para fora e para dentro dos dois corpos.

Tão brilhantes,gordos e saudáveis,eram as sanguessugas do santo laguinho do Matias.

O pinguço subiu ao catre, rangente , enquanto suas visitas entravam no quartinho - e chorava e se mijava, o infeliz. Mas logo estaria enxuto de vez.

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