quinta-feira, 7 de julho de 2011

[treco] pathos e marrecos


[ escrito para o Desafio dos Cem Dias-Etapa III - tema: Metalinguagem/ O foco principal é desenvolver uma narrativa metalinguistica, onde os personagens ganhem "vida própria".
,da comunidade orkútica ESCRITA E ANÁLISE DE TEXTOS]

PATHOS E MARRECOS

COMÉDIA EM UM ATO, ENCENADA EXCLUSIVAMENTE DENTRO DA TUA CABEÇA (TODAS AS NOITES, DE SEGUNDA A DOMINGO)

Cenário: A área de lazer do "Campos Elíseos", um condomínio fechado de luxo situado em área nobre do Mundo das Idéias Platônico.

Personagens: Toda aquela caralhada sem fim de Deuses Gregos, tá ok? Mais alguns convidados surpresa.


[Quando as cortinas se abrem, vemos todo o PANTEÃO ocupado em fazer nada.
ZEUS tem um radinho a pilha encostado no ouvido, segue ansioso uma partida de futebol. HERA troca fofocas com AFRODITE enquanto essa faz sua manicure. APOLO afina um violão. ATENA e HERMES jogam damas; ARES , um videogueime . As PARCAS estão brincando de cama-de-gato e por aí vai.

HEFESTO, uma prancheta na mão, quebra o galha como contra-regra. Tenta chamar a atenção do elenco, da coxia.]

HEFESTO
Psiu!Psst!

[Zeus ouve o chamado insistente, larga o radinho, contrariado, olha em volta, procurando o pentelho - percebe ,afinal, o/a Leitor/a que encara esta página .

Assusta-se, apruma-se, tosse, pigarreia, tosse de novo - até que que todo o resto do Panteão vira-se em sua direção e percebe que o show já começou.

Todos largam de imediato o que estão fazendo, erguem-se, ajuntam-se no meio do palco, formam uma galeria viva em poses fixas, majestosas, de estatuária clássica.

Ficam parados assim por um bom tempo. Hefesto passa no fundo, visível apenas por sua corcunda, resmungando, ajeitando a bagunça que os outros deixaram pelo palco.

...Zeus cansa-se,afinal.Enquanto os outros o observam com o canto dos olhos, nervosos, ele geme, estica-se todo; aproxima-se da beira da página, suspira, volta-se para o/a Leitor/a.]

ZEUS
Vou te dizer uma coisa: vida de aposentado é foda.

[O resto do panteão aproveita a deixa , relaxa, concorda em murmúrios, balançam as cabeças; espalham-se pelo palco, à vontade, aliviados.]

ZEUS
Não é, não é? Pois é ! E mais: o sujeito fica fora do mercado de trabalho por um tempinho só, e , ó lá. Já é esquecido, ninguém mais se lembra dos séculos de dedicação exclusiva.

[Volta-se para os colegas, esperando aprovação, e o resto do elenco suspira e continua balançando as cabeças.]

AFRODITE (para ninguém em particular)
Ele não parece o Antônio Fagundes?

ZEUS(animando-se)
E digo mais! E digo mais! Eu construí essa empresa sozinho, carreguei tudo nas costas esse tempo todo [ATLAS tosse discreto no fundo e ninguém lhe dá atenção] pra depois deixarem a gente de escanteio- "ultrapassado", onde já se viu!

AFRODITE
Eu gosto muito do Fagundes. Você já viu aquele filme...?

ZEUS (impacientando-se, perdendo o foco)
Nhé nhé nhé curso de reciclagem nhé nhé nhé sei lá mais o quê- ora essa! Primeiro vêm os romanos mudando o nome de todo mundo pra não terem que pagar royalties, depois os cristãos enxugando tudo e cortando pessoal...Raios os partam!

[Trovões ao fundo.
O elenco começa a ficar inquieto.]

HERA
Pois acho que tudo começou a ir ribanceira abaixo quando o senhor meu marido começou a aceitar qualquer um no nosso Panteão. Esse bando de semi-deuses lá... [fulmina o maridão com o olhar]

ZEUS
Ah, cala-te, ó mulher! ...e a senhora sabe muito bem que era isso ou pagar pensão alimentícia pelo resto da eternidade.

[CUPIDO entra voando no palco, tranquilo.
Hera exaspera-se, sai batendo os pés - volta imediatamente, ainda batendo os pés, mas carregando uma espingarda, com que atira no menino alado. Erra sempre, mas não para de atirar até que enxote a criatura do palco.
Todos os deuses fogem dos tiros; apenas Zeus permanece parado,olhos fechados, expressão furiosa, segurando-se.
Quando o tiroteio finalmente acaba:]

ZEUS(mãos erguidas, olhando para o alto)
Dai-me forças, meu Senhor Jesus Cristo! [Dionísio faz que vai responder, pára, desiste, dá de ombros.] É nisso que dá: mulher que não trabalha fora, dá trabalho em casa. Pois no meu tempo não era assim, tinha nada disso não, mulher sabia direitinho qual era o seu lugar. No meu tempo...

HERA
No seu tempo, todo homem era veado, querido.

[Zeus fica vermelho, ergue um dedo, abre a boca para responder à esposa - pára, interrompido pela cantinela de vendedor de um senhor cego que passa devagar, com cuidado, pela platéia:]

HOMERO
Pipoca, amendoim, pomo da discórdia, odisséia, chiclete-bola...

[As divindades ficam alvoroçadas, todos catam e contam trocados de suas togas e vestidos, avançam em direção ao vendedor - todos menos o deus supremo:]

ZEUS(faz exatamente como Thomas Green Morton)
Rá!

[Um raio cai na platéia, atingindo o ceguinho em cheio e deixando apenas um montinho de cinzas, os óculos escuros e a bengala.]

ZEUS
É tudo culpa desse sujeito.[durante o desabafo, Apolo afasta-se discretamente, escondido atrás dos outros deuses] Primeiro vêm os poetas, depois os dramaturgos - depois aparecem os filósofos, e então os cientistas! [Apolo, desesperado, já não sabe mais aonde se enfiar - Atena cata uma coruja até então pousada calmamente em seu ombro e tenta enfiá-la debaixo do vestido, enquanto a pobre criatura pia e agita as asas espalhando penas para todo lado]. E depois de dois mil anos dessa putaria de história do pensamento humano, vem neguinho com essa treta de "relativisimo isso", "relativismo aquilo"...

DIONÍSIO
Nietzsche, Nietzsche!

ASCLÉPIO
Saúde.

APOLO
Deus te crie.

ZEUS
Aí, quando o sujeito se dá conta, ele já virou...

HERMES
A representação antropomórfica de um ideal de ordem cósmica.

ZEUS
É,bem...

HERMES
A encarnação do princípio hierárquico, na transição das sociedades nômades para as agrárias.

ZEUS
Tá bom, já chega.

HERMES
O atavismo patriarcal num mundo pluri-...

ZEUS
Atavismo é a piroca - vem cá pra eu enfiar esse caduceu no seu cú, moleque, vem! [saca uma das sandálias, corre atrás de Hermes, que apenas sai flutuando , as asinhas em suas botas batendo incessantes - Zeus pára quando o outro sai de cena, afinal, volta sem folêgo para o centro do palco, com uma mão nas costas, cara de dor. Calça a sandália, recompõem-se.] Tá vendo o que eu disse, tá vendo só? A gente dá educação pros filhos, eles acham que sabem mais da vida do que os pais - agora, já no *meu* tempo, a gente respeitava os mais velhos.

HERA
Querido, você matou seu próprio pai a sangue-frio.

ZEUS
Bem...

HERA
E abriu o bucho do sujeito porque ele costumava engolir todo filho recém-nascido. E aí depois...

ZEUS
Tá bom, eu sei, eu sei. Mas o que importa é o princípio da coisa, tá certo?As coisas eram mais simples naquela época - o mundo fazia sentido! Hoje não, parece que todo dia é carnaval![Dionísio ensaia um protesto veemente mas quem está do lado o segura pelos braços e tampa sua boca] Sabe aonde isso vai parar? Sabe o que acontece quando todos os velhos valores desaparecem, quando os deuses da tradição saem de cena - sabe o que entra no lugar?

[HADES aparece pela primeira vez, gótico, cara de coadjuvante de filme expressionista alemão. Impassível, entra no palco sem andar, flutuando rente ao chão numa nuvenzinha de gelo seco.]

HADES
"Não está morto o que eterno jaz,
Pois em estranhos éons, mesmo a morte dá pra trás."

[Alguns deuses se benzem, outros fazem o sinal da cruz, algum ainda bate na madeira.
Zeus treme e se scacode todo de cima a baixo como se um calafrio percorresse sua espinha.]

ZEUS
Credo! Brrr! ...pois é, meu povo, é o que eu digo: nós temos que voltar ao básico, temos que redescobrir os velhos valores. Porra, pensem no bem que vocês podem estar fazendo a alguém.

[Faz sinal a um tímido ARES para que ele chegue à beira da página]

ARES
Boa-noite-meu-nome-é-Ares-O-Deus-da-Guerra... Eu estou aqui para pedir uma ajudinha aos senhores - eu poderia estar nas ruas massacrando,pilhando,estrupando[sic],mutilando,tomando banho no sangue quente dos meus inimigos, mas ao invés disso, peço apenas um tributozinho em mão de obra escrava e sacrifícios humanos...

ZEUS
Ok, tá bom, tá bom, já chega. ...e mais: vocês têm em nós seus amigos mais antigos e queridos...nós estamos com vocês desde o início, quando eram apenas um punhado de trogloditas conversandos uns com os outros à base de golpe da tacape na cabeça - vocês se lembram, se lembram? Nós nunca nos esquecemos! [faz sinal aos outros para que se aproximem] Nós sempre estaremos lá por vocês - então, por que não estender a mão? Hein?

[Os deuses despem as porções de cima de suas togas e vestidos; cada um veste uma camiseta barata com uma letra estampada, e , quando eles se dão as mãos, as letras unidas formam:
"ADOTE UM DEUS"
Todo mundo começa a cantar "We are the world"]

ZEUS(berrando acima da cantoria)
Isso mesmo, galera! Nós somos os primeiros, nós somos os originais, nós somos únicos...

WOTAN
Ach!

[Os DEUSES NÓRDICOS invadem em bando o palco, pegando os gregos de surpresa.]

WOTAN
Achtung, baby!

[E os dois bandos se atracam ferozmente.
WOTAN puxa a barba de Zeus enquanto este enfia um dedo em seu único olho são; FREYA e Hera se agarram pelos cabelos; BALDUR e Apolo trocam tabefes; THOR e Ares ficam se peitando e se empurrando num "tu não me cutuca/eu te cutuco sim/não me cutuca/te cutuco sim"que não acaba; LOKI e ERIS ficam de lado , atiçandos os ânimos etc. etc.
E o autor já está de saco cheio desta palhaçada; antes que se veja obrigado a tocar a Cavalgada das Valquírias, a chamar os helicópteros huey e a bombardear o palco com napalm, decide puxar as cortinas e decretar o]

FIM



[...mas,bem,sabe como é. Às vezes bate uma leve curiosidade.
Daí o autor resolve dar uma espiada atrás das cortinas...
E pega os dois panteõs entregues a um feliz oba-oba: em meio à chuva de confete e serpentina, estão enfileirados num trenzinho da galeria que cruza e recruza o palco, puxado por Dionísio. Ao fundo, dois carros alegóricos, um representando o Cavalo de Tróia e o outro, um navio viking com proa de dragão.
Ah, que se foda. Você me dê licença que tem uma vestal ali me fazendo uns sinais e hoje o autor está muito a fim de comungar com o divino.
Namastê procê!]

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