terça-feira, 16 de agosto de 2011

[conto] Beijo de Narciso



 
"O melhor sexo é o sexo solitário."(punheteiro anônimo)


É claro que José Maria já sonhara com seu próprio ménage à trois; que seria, ao menos no seu ponto de vista punheteiro e alucinado, uma segunda perda da virgindade. O que não deixara de ser verdade, pois, quando a fantasia se tornou realidade, trouxe um componente extra que José Maria não esperava, tampouco planejava - certamente, nunca imaginara que teria, algum dia, uma primeira experiência homossexual , enfiada em sua fantasia erótica predileta,   e que fosse gostar.

E foi tudo muito confuso desde o início, e não melhorou depois do final:

José Maria, meio perdido numa noite de balada, meio tonto e deprimido de dor de cotovelo , martirizando-se com a própria solidão e com um copo de alguma mistura qualquer e indecifrável na mão; plantando num canto da boite, na semi-escuridão semi-esfumaçada de gelo seco , deixando a multidão passar, roçando-o, empurrando-o, ignorando-o seu emputecimento impotente.

Você já passou por isso antes, é claro: "Que merda eu tou fazendo aqui afinal, meu deus do céu...".

Como em resposta à questão idiota ruminada de novo e de novo e de novo...inevitavelmente, alguma respota teria que surgir...inevitavelmente, José Maria arranjaria alguma resposta, qualquer uma, que o fizesse esquecer de vez a questão, ou deixá-la de lado por um momento, pra poder sobreviver, pra poder aguentar:

A garota passou por ele, solitária: a princípio, só uma mão, macia, quente - extendida, os dedos roçando o queixo de José Maria, fazendo a boca abrir, despencar; ele acompanhando, abobado, a menina que passava e logo desaparecia no tumulto dançante. Apenas o mais leve traço de um sorriso, dois olhos púrpuras faiscantes.

José Maria ficou mais perdido e furioso e revoltado do que antes; tanto, que não poderia mais ficar parado. Jogou o copo de plástico de lado, ignorando o xingamento alheio, forçou caminho tentando encontrar o rastro, uma fragância da mulher, que fosse - a silhueta, aquela figura esbelta de um modo discreto: um jeans surrado, uma camiseta sem mangas...? Sombrancelhas escuras, mas o cabelo curto de um loiro pálido, quase prata no escurinho , onde, meu deus - ali.

O baticum da música em sua na garganta : a garota estava de costas, a mesma blusa sem mangas, a mesma calça jeans, dançando languidamente , sozinha...Sem nem pensar, José Maria tocou-lhe um dos cotovelos...ela se voltou lentamente, sem espanto...sorrindo, como se não tivesse parado de sorrir desde que vira José Maria...Os mesmos olhos púrpuras. Era um cara.

O carinha, a mais  leve sombra de uma barbicha : parado agora com as mãos na cintura. Encarando , firme,sem se esquivar, e o sorriso parecia de pura troça,agora. José Maria sentiu-se frio como que molhado de chuva, como se tivesse se mijado em público: humilhado, sem nem ter como purgar a frustração, agora. Afastando-se de costas, virando-se para sair correndo dali pra se afogar em algum barril de cerveja - dando de cara com a menina, quase trombando com ela, nariz no nariz, boca na boca. Sorriso tão faiscante quanto os olhos violáceos.

Ela começou a dançar com José Maria ali mesmo: exatamente como o outro dançava, requebrando-se lentamente, guiando ou cercando José Maria, que se deixou levar , grudado naquele par de olhos. Sentia-se derretendo ; sentia-se como recheio de misto-quente.

Sentiu o calor do outro às suas costas,virou-se alarmado - de novo: quase o beijo trombado, no susto. Mas não recuou, dessa vez: a menina dependurou-se nele, plantou o pequeno queixo em seu ombro, abraçada a seu peito. Os seios pequenos comprimidos contra suas costas. Os braços do outro envolvendo sua cintura...

E então a coisa começou a ficar realmente estranha: porque os dois gêmeos óbvios se beijaram, ali na frente/em cima/através de José Maria. Aquilo foi o fim de tudo, realmente.

O resto da noite foi nebuloso... Foi bizarro. Um quarto de hotel anônimo; uma confusão de braços e pernas,bocas, línguas, orifícios, apêndices. José Maria não saberia dizer quem comia quem ali no meio, quem era quem. Quem era ele ali, naquele bolo de gente.

A manhã nasceu devagar, José Maria custando a se perceber, custando a entender onde diabos fora parar - custando a aceitar o que acontecera na noite anterior.

*Alguém* estava deitado de bruços a seu lado, nú, ressonando levemente na cama revirada. Percebeu com um suspiro agoniado de alívio que era a menina... percebeu de imediato como era besta esse seu alívio. Deixou-se ficar por um momento, contemplando o corpo esguio, leve; ela tinha uma longa tatuagem subindo e descendo as costas: um caduceu, duas serpentes envolvendo em espirais um bastão central. Bizarro.

Arrastou-se, coçando-se do recém-despertar, até o banheiro, entrou sem bater - encontrou o outro, escovando os dentes, nú em pelo; que lhe sorriu com a boca cheia de  espuma. Aquela foi a pimeira vez na vida em que José Maria dividiu uma escova de dentes com alguém; a primeira vez que dividu um chuveiro, também. O outro tinha uma tatuagem idêntica à da menina.

A semana passou custosa, febril: como a primeira noite. José Maria não voltou para casa - não quiz largar dos gêmeos, ou eles não quiseram largá-lo, tanto fazia. Sequer saiu do quarto; fazia todas as refeições ali dentro. Passava quase todo o tempo nú.

, e só. À espera. Depois dos dois primeiros dias, os gêmeos começaram a passar quase os dias e noites inteiros fora. José Maria reclamou, a princípio, e eles o calavam com seus sorrisos, beijos, carícias. Mas logo
simplesmente o ignoravam.

No fim daquela semana, José Maria estava dormindo no chão. Debaixo da cama. E o pior de tudo, o mais terrível: ouvia aqueles dois acima do ranger do colchão, do estrado , sobre sua cabeça, a noite inteira. Ouvia o roçar de lençóis, ouvia os sussurros, os gemidos. Ouvia os risos. Podia jurar que havia mais alguém com os dois.

Passou a noite chorando; fugiu no dia seguinte, levou todas as toalhas do quarto de hotel por vingança.

Voltou a seu apartamento às cegas, por instinto. Seu lar fedia a comida estragada.

Encontrou-se no espelho de corpo inteiro da porta do guarda-roupas: derrubado, barbado, as sombras das costelas, o corpo murcho. Parecia ter envelhecido um par de décadas; já se sentia morto, de fato.

Matar-se seria mera formalidade; sequer valia o trabalho. Caiu na cama empoeirada, deixou-se ficar; afundou-se naquela terna, agonizante volta ao lar.

Passou uma noite delirante, outra noite que não parecia ter fim. Sonhava com Platão e suas mônadas; relembrava, revivia o que lera há muito tempo antes, anaminésico.

Platão via as pessoas como metades desmembradas de um corpos inteiros, originários; o que antes fora completo, sereno, assexuado tornara-se - por sabe-se lá que capricho de metafísica ou dialética - os pares opostos dos sexos, às vezes, até mesmo trios. E os pedaços separados das mônadas passavam a eternidade procurando um ao outro; tentando se reencontrar. Se recompor.

José Maria não fazia nem nunca fizera parte da mônada que eram os gêmeos. Gargalhando de tristeza naquela madrugada derradeira, percebia que fora apenas seu brinquedo sexual. Os gêmeos não tinham nada a compartilhar; José Maria ficava só, só ele e sua solidão.

Pela manhã, morrera.

José despertou assustado; tinha caído da cama. Não se machurara, mas gemeu um pouquinho só para aproveitar a deixa, e mais de sono do que de qualquer outra coisa. Depois riu-se, e gemeu mais um pouquinho, erguendo-se sobre a cama.

Parou espantado: do outro lado dos lençóis, Maria também tentava se arrastar do chão de volta para a cama.

Ela o olhava, boquiaberta, incrédula. Logo, os dois tiveram que abandonar seu estupor conjugado; levantaram-se ao mesmo tempo, a mesma falta de jeito, a mesma nudez completa.

A mesma,nada. Contemplando-se através da cama, sorriram-se. Ora, que se dane. José e Maria resolveram ficar por ali mesmo a manhã inteira; de repente, até fariam um cristo,uai.

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