terça-feira, 2 de agosto de 2011

[conto-curto] Fora de si

[escrito para a Etapa V do Desafio dos Cem Dias - tema: "Releitura":- Os participantes tem que fazer uma releitura de um conto de sua própria autoria, mudando o foco da história
O conto q escolhi para rever é este aqui.]


Dois passos para trás, um passo para frente.

Carlinhos era obrigado a admitir que estava subindo na vida; se não estava subindo depressa, se não tinha chegado aonde queria chegar (ainda), bem, paciência. O jeito era seguir em frente : sempre para cima .


Como era mesmo aquele bordão do século XX? "Para o alto e--".

O "timing" do lançamento fora perfeito: o helicóptero teleguiado, parado no ar, zumbindo suavemente a três centenas de metros acima da cratera fumegante do vulcão que acabara de acordar mal-humorado depois de séculos de hibernação. Com toda aquela fumaça, nada se veria a olho nú, nem vulcão, nem a ilhazinha em que ele era alojado, nem o mar resplandecendo ao pôr-do-sol; Carlinhos acionou o "input" infravermelho: a paisagem tropical, marinha, trocada de imediato por um inferno pulsante em néon vermelho e amarelo sob um fundo negro nebuloso. Brilhante, brilhante...

"Ei, boa tomada, Kay-Kay - siga seus instintos rapaz, mas ó, não se esqueça do nosso prazo apertado, ok? Vou iniciar a contagem regressiva...- agora."

Carlinhos apenas grunhiu eletronicamente em reposta à mensagem que Kurtz, o último diretor do show, lhe enviava por rádio. "Instintos". "Iniciativa". Certo.

Uma máquina tem iniciativa própria, seu Kurtz? Um sujeito que tem 95% de seu corpo constituído de próteses ciborgues ainda tem algum instinto , caro diretor?

Certo.

Carlinhos fechou a mente para a lenta, deliberada contagem regressiva  do "lançamento" - focou-se naquele borbulhar coruscante rubi sobre o negrume lá embaixo, lá fora, além...quase hipnótico...como era,seria, o sol poente refletido, preguiçoso, naquele marzão todo que ele não enxergava mais...

Uma porção de massa alaranjada naquele fundo sem ponto de fuga tornou-se vermelho brasa num instante - Carlinhos saltou de imediato do helicóptero robô.

Mal ouviu o diretor praguejando pelo canal aberto - desligou-se. Mas tudo bem: não poderia ouvir, mas poderia certamente imaginar o engolir em seco dos milhões de espectadores do único reality show de catástrofe do planeta: "Kamikaze Kid: Se Cem Vidas Ele Tivesse, Cem Vidas Ele Daria...Para A *Sua* Diversão!" ... sua audiência cativa, para a qual Carlinhos não dava mais a mínima. Aquele momento era exclusivamente seu.

Cortou o "input" auditivo, também: o som uivante do vento,da queda, logo fora engolido pelo rugir imensurável do vulcão.Aquilo estava estragando o momento aéreo, quase anti-gravitacional de Carlinhos.

Infelizmente, não teve como apreciar o próprio momento da explosão. Talvez pudesse revivê-lo depois, revendo- revivendo - o registro holo-sensorial do evento.

Mas o "momento" é inexistente,não? Não há o agora, nunca. Há o antes, há o depois.

Depois da explosão: Carlinhos fora lançado a centenas de quilômetros do vulcão, num arco supremo, um vôo não mais aéreo...sideral. Quase. A sensação de leveza era ainda maior do que antes, impossível - transcendental. Carlinhos juraria que, no ponto mais alto de seu vôo, podia ver a curvatura do mundo a seus pés.

Não que ainda tivesse pés naquele momento ( o mais transcendente, o mais fugaz de todos): seu corpo robótico fora completamente estraçalhado e cuspido em todas as direções. Aquele ponto de vista era o de sua cabeça solta,sozinha,desenraizada; dela, e do cérebro perfeitamente protegido,único vestígio orgânico do antigo,humano - defunto - Carlos Carvalho ( que descanse em paz).

Depois do vôo, a queda: a cabeça de Carlinhos caiu no oceano, furou sua superfície com um espadanar d´água discreto, afundou lentamente.

O sinal de socorro já fora emitido, automático, a equipe de resgate do programa localizaria a caixa-preta de seu eu...eventualmente. Mas Carlinhos não tinha pressa.

Pousara afinal no fundo, sem ter como advinhar que profundidade era aquela, sem ter qualquer noção exata da passagem do tempo.Aquela paisagem era bastante monótoma, aliás; e Carlinhos, é claro, não tinha como desviar o olhar.

Num dado momento, um caranguejo passou a sua frente, vindo da direita , andando de lado - parou: examinou o rosto robótico de Carlinhos com os olhos dependurados naquelas falsas antenas, cutucou o nariz de boneco-de-testes da cabeça de ciborgue com sua enorme pinça, desconfiado. Logo perdeu o interesse, afastou-se sem dizer adeus, pela esquerda: sempre andando de lado.

Carlinhos sabia exatamente como o bicho se sentia.

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