quinta-feira, 11 de agosto de 2011

[conto] Fluxo de consciência


Desatenta, aparvalhada como de costume, Janete demorou um pouco a perceber seu estado agudo de corrimento mental e, quando afinal se deu conta da gravidade da situação, sequer teve tempo para aceitar que era tarde demais para chamar qualquer torneiro mecânico, tapar os vazamentos.

Havia apenas aquela coriza irritante, a princípio, mas a irritação, Janete apenas a registrava para esquecer o incômodo logo em seguida, mecanicamente assoando o nariz em lenço de bolso, pedaços de papel higiênico, atacando alguma toalha de rosto ou mesmo manga de camisa, quando as fungadas não seguravam aquele gotejar quase doloroso de tão líquido,frio.

Janete não atentou para o quão limpos ficavam esses duvidosos acessórios de higiene otorrina; apesar de amassados pela força desesperada da esfregação, não apresentavam qualquer mancha de umidade após um par de minutos de seu uso. Sonsa, trupicante, ainda por cima, com os olhos marejados do calor de uma febre que ela teimava em ignorar: Janete não percebia que as gotas escorriam pelas bordas de suas narinas progressivamente inflamadas e pingavam para cima, deixando além de seus cabelos castanhos uma trilha aérea, quase reta, de pequenos globos brilhantes que logo sumiam de vista.
 
Às vezes, não: o que Janete não percebia, seus colegas de trabalho não podiam deixar de notar. A atarantada funcionária pública tinha que se aquietar, inevitavelmente, em algum momento: sentada em sua mesinha atulhada, tentando se concentrar na montanha de papéis a sua frente. Nessas horas, a trilha dupla de pingos  unia-se numa ogiva há meio metro acima de sua cabeça; aqueles grânulos inconstantes de matéria que fluia das narinas de Janete tornavam-se mais densos, tornavam-se maiores, de fato, gotículas tornadas bolhas, quanto mais se afastavam do rosto ausente e cansado da moça, fundidos numa massa irriquieta - como uma nuvem de tempestade agitada, mas cristalina, âmbar?jade?inconstante nos detalhes, brilho, contorno.

Janete, inconsciente do murmúrio cada vez mais constante e alarmado dos colegas de repartição; respondendo mecanicamente a qualquer hesitante abordagem, "ahã", "unhum", "tudo bem", " 'brigada", "tá bom", "um minutinho só", etc. - respondendo mecanicamente ao chamado do chefe, encaminhando-se lenta, ausente, lendo, relendo,remexendo um maço de documentos colado ao rosto : seguida por sua fiel,dupla fumarola de maria-fumaça de brinquedo.

Bate na porta, entra pedindo licença. o chefe pede que ela se sente, ela agradece, senta-se.

Os dois ficam se encarando, calados, por cerca de um minuto.

Enervado, ansioso: o chefe olha pra cima, olha pro rosto apático, quase sonâmbulo, da funcionária; olha pra cima - uma pocinha forma-se e se disfaz no teto onde as gotas batem cada vez mais frequentes e com mais força, lutando para se juntarem - olha para o rosto ausente de Janete, olha para o falso bigode de Salvador Dali que brota do nariz avermelhando, os gotejares irmãos tão constantes que parecem mais dois estreitos fios d'água.

Ahã.Então, Janete...-inicia, pára, um cado alarmado, quando Janete esfrega a ponta do nariz com a palma da mão.

Então...Tudo bem, Janete?

Tudo.
 
Tudo?
 
Tudo sim senhor.
 
Bem.Ahã.E a saúde, Janete.
 
Tudo bem, sim senhor.
 
Tudo?
 
Tudo.

Tudo mesmo?

Tudo sim senhor.

E o chefe se impacienta, incapaz de se concentrar quer na cara inexpressiva de Janete, quer no fluxo inconstante - chama a secretária no interfone: a secretária bate na porta, entra pedindo licença. ele a chama até a mesa, ela vai, ele lhe sussurra algo no ouvido. Os dois olham hesitantes para Janete, que apenas funga e age como se estivesse dormindo em pé, sentada.

A secretária conduz Janete gentilmente, pelo cotovelo, até o banheiro feminino; a outra a segue, um pouco mais confusa que de costume e sem fazer qualquer pergunta. A secretária posiciona Janete cuidadosamente em frente ao amplo espelho do banheiro, pede que ela dê uma boa olhada em seu reflexo. Janete olha. continua olhando. Vira-se para a secretária. olha de novo no espelho. vira-se de novo para a secretária.
 
Que lhe pergunta: viu?

Vi o quê?

Janete é dispensada mais cedo naquele dia. Na saída, o chefe sugere firmemente que ela procure um médico. Ela agradece, mas diz que aquela gripe deveria ser passageira.

Um pouco inquieta, custa a dormir naquela noite. Fica olhando para o teto, onde uma mancha inconstante extende-se e se contrai sob o gotejar incessante. Janete tenta se concentar e não consegue, cai no sono sem nem mesmo percebê-lo.

No dia seguinte, sequer permitem que ela bata o cartão.

O fluxo duplo é agora quádruplo: a nuvenzinha líquida, tempestuosa que segue fielmente Janete avoluma-se com mais duas correntes que partem dos ouvidos da mulher.

Ela é encaminhada diretamente a um psicólogo do convênio da repartição. Sentam-se silenciosos na salinha bem-iluminada mas um tanto estreita. Olham-se através da mesinha cheia de lembranças familiares, onde o psicólogo juntas as mãos - as de Janete estão em seu colo,como uma pomba que dorme com as asas semi-abertas.

O psicólogo sorri, mas seu rosto treme ligeiramente, num esforço para não fixar os olhos na massa caótica, semi-gelatinosa, que se agita além da moça, no teto de sua sala de trabalho.

E então Janete.

Janete, nada.

Tudo bem?

Janete cala, faz menção de dar de ombros, não dá.

Janete...

Janete aguarda.

Há alguma coisa lhe incomodando?

Janete parece confusa.

Janete, vamos, diga alguma coisa...

Janete abre a boca: bolhas enormes começam a escapulir de entre seus lábios, flutuando,flutuando - Janete para de boca aberta por um instante, depois corta a fila de glóbulos. Não sabe o que dizer.

O psicólogo exaspera-se - ergue-se de sua cabeça, dá um tapa na mesa. Janete dá um pequeno pulinho - arregala os olhos: dá sinal de vida, afinal.

Janete, concentre-se, mulher! Concentre-se!

O susto, uma pequena espera, uma resposta borbulhante, quase incompreensível:Como assim, doutor?

Outro tapa na mesa: Pense, Janete, pense!

Pensar doutor?

É, Janete, pense, concentre-se, faça esse esforço , por favor.

Pensar em quê, doutor...

QUALQUER COISA, MULHER!

O psicólogo cala-se , avermelhado.Janete engole em seco(em seco),inquieta-se com o olhar fixo do outro, remexe-se na cadeira, tentando ignorá-lo - por fim suspira, sede, confirma com um aceno de cabeça, apruma-se:fecha os olhos.

Bem apertado. Mais força. O ritmo do gotejar altera-se dissonante, varia com as caretas d esforço no rosto da mulher - a massa informe pára de se agitar, torna-se mais densa, torna-se aos poucos mais compacta.

Uma forma geométrica se solidifica. Um cubo? Arestas, textura ... um objeto de metal, acinzentado... Um pequeno cofre: sólido,pesado, trancado.

Janete arregala os olhos de repente, olha para o psicólogo, sorri, abre a boca para dizer alguma coisa quando o pequeno cofre cai em cheio sobre sua cabeça.


[inspirado num episódio da série em desenho animado AS TERRÍVEIS AVENTURAS DE BILLY E MANDY]

Nenhum comentário: