sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

[mini-conto] a vida espiritual das formigas

A VIDA ESPIRITUAL DAS FORMIGAS

Se as formigas tivessem religião, seu deus seria o açúcar, não acha?
Quando era criança, eu pensava que , se dormisse de boca aberta, todas as formigas da casa subiriam por minha cama afora no meio da noite, entrariam por minha garganta adentro e roubariam todo o conteúdo do meu estômago. 
Veja bem, nunca tive formigofobia, se é que isso existe. Se existe, não sou um exemplo; nunca fui contra ou a favor de formigas, a não ser contra as picadas sem provocação que elas dão na gente de vez em quando, ou quando, aí sim, quando atacavam a *minha* comida na cozinha. Bom, lembrei-me disso agora porque, se o deus da formiga é o açúcar, bem, o meu deus é meu deve ser o deus da comida, da cozinha – o meu deus deve ser o meu estômago, né.
E olha que eu durmo de boca aberta. Segundo minha mulher, ronco como um porco, heh, e ela estava sendo carinhosa quando dizia isso, minha leitoazinha... que ela também ronca, que eu ouço. ...digo, roncava. Veja bem: o que temos em comum, os dois, não é que somos dois roncadores profissionais, é que dormimos de boca aberta e ressonando como suínos pois somos dois pançudos.
Ser gordo não é problema... Tá certo, a saúde é um problema, a pressão alta, as outras complicações que vêm com a obesidade... Aquela queimação no estômago, talvez seja úlcera, certo?...talvez seja apenas o estresse... Ah, só agora me bateu: sabe de onde deve ter vindo aquela idéia besta de que falei antes? As formigas, a boca aberta? Isso deve vir daquela expressão, “acordar com a boca cheia de formiga”...se bem que quem está com a boca cheia de formiga não acorda, né. Heh.
Mas ser gordo nunca foi problema pra gente. Digo, além dos problemas da obesidade – enfim. Eu amo minha esposa apesar dela ser... Digo, eu amava. ...é, eu sei. Não , tudo bem, tudo bem, eu só...enfim.
Se eu sou religioso? Não sei, acho que sim. Bem, minha esposa era. Acho que ela teria gostado do próprio funeral. Não sei. O que você acha?
...eu... não tudo bem, acho que só estou um pouco cansado. ... mas, pois é, eu e minha esposa estávamos em tratamento, procuramos o médico juntos, apesar da dor no estômago ser só minha. Fizemos a dieta juntos.  É, você também, né? Heh. Todo mundo faz dieta hoje em dia, eu sei. Mas , não sei. A dieta não estava adiantando. Nós cuidávamos um do outro, cuidávamos da dieta um do outro, eu e minha mulher. Mas não adiantava; acho que o médico pensou que a gente trapaceava, digo, que eu trapaceava. Minha esposa estava emagrecendo, eu não. Nós vigiávamos um ao outro, cuidávamos um do outro , os dois estavam seguíamos a dieta como se fosse a bíblia. Heh. O papo de religião , de novo.
...não, tudo bem, eu quero continuar. Bom... heh, nós brincávamos, eu e  minha mulher. Ela dizia que eu era sonâmbulo, só podia. Me vigiava o dia inteiro – heh – sabia que eu não estava trapaceando a dieta, sabia que eu levava aquela história toda a sério. Eu deveria estar assaltando a geladeira de noitinha, ela com seu sono pesado, eu, andando dormindo, fazendo o lanchinho da meia noite, sonâmbulo! Heh.
No fim, não tinha mais geladeira pra eu assaltar, sonâmbulo ou não. Não havia mais comida na casa, nada que não estivesse dentro dos limites da dieta, e olhe lá. E eu continuava...gordo.  Minha esposa, não. Ela emagrecia bem. É, bem até demais. Estava começando a me preocupar. Não, ela não estava tomando nada, eu saberia.
Ela não tomou uma overdose de nada. ...não, nem eu, mas tudo bem que queiram me examinar com mais cuidado. Aquela dor no estômago e tudo mais, eu sei. Uma nova doença, talvez? Eu sei, vocês não querem me alarmar, não querem alarmar ninguém. Mas eu não posso lhes dizer mais nada além do que já disse. Não sei explicar; não sei porque acordei aquela manhã e minha esposa estava morta ao meu lado, na cama. Seca. É , seca. Seca,seca,seca. Disseram que não encontraram nada no exame, porque não havia nada lá dentro. Ela estava vazia, oca, seca.
Eu? Não senti nada. Digo, além da dor no estômago, mas gozado, não senti nada naquela manhã, nem depois. ...não, senti algo, sim. Foi o que me acordou , pra descobrir minha mulher morta a meu lado. Minha boca estava pinicando. Heh. Minha esposa, morta na cama, mas quem acordou com a boca cheia de formigas fui eu.
Tudo bem, eu quero que façam o exame. Aquela dor no estômago sumiu , sabe, mas, numa situação dessas, quem vai saber. Vão em frente. Eu levo a sério minha saúde. Meu corpo é um templo.

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