terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

[mini-conto]um homem sem pecados

UM HOMEM SEM PECADOS
 
O Filho Pródigo orgulhava-se, ainda que de forma amarga, cínica, do próprio destino, esse exílio voluntário no mundo dos homens, essa vida errante longe da casa paterna. Ansiava pelo retorno ao lar, sonhava, chorava, odiava essa nostalgia,mas não a negava – ou antes, honrava suas origens negando-as de forma absoluta. Dissiparia toda a sua herança, retornaria aos seus nú e inteiramente dono de si e da própria sina.
 
Tivera desde o início do mundo, tempo mais suficiente, para sofrer esse orgulho e para alimentar a dor de seu remorso . Não fora o horror de seu ciúme fatricida o que afastara o Filho Pródigo dos seus, talvez para toda a eternidade; não admitia jamais que tivesse sido “expulso”, banido, que expiava seus erros milênios afora. Afirmava a si mesmo e bradava aos céus que tinha uma missão sagrada a cumprir, uma missão trágica, de fato, um fardo terrível que não abandonaria, por mais maldito que seu passado o tornasse, por mais longa que fosse sua própria sombra.
 
Ensinara aos homens o que precisavam saber para se erguerem do lodo de seus instintos; trouxera-lhes a luz matinal de um saber que os tornava plenamente humanos. E fora rejeitado por seus aprendizes, é claro, num reflexo distorcido, irônico de sua própria revolta contra pais e família. O Filho Pródigo era seu próprio homem, não almejava o amor de seus afilhados, e media seu sucesso pelo ódio de toda a gente: ele os ensinara a ser como ele , logo, a rejeitar ferozmente seu benfeitor e a tentar superá-lo, como ele mesmo fizera com o pai.
 
Sozinho, afinal, no todo do mundo. O ódio era uma medida precisa de poder, e ele era o ser mais odiado do universo. De fato, multiplicara sua herança, ao invés de perdê-la: quanto mais dava de si, mais rico se tornava. O Filho Pródigo estava cheio, cheio de si. Ali, ele conheceu o horror: aquela fantasia infantil de ser o centro do universo, o eixo do mundo. Essa solidão absoluta. Passara toda a sua longa, exaustiva existência cavando fundo na terra para se afastar do céu, e maior dos absurdos, chegara cego aos pés do firmamento.
 
Exausto, e ainda assim incapaz de se livrar do fardo do próprio orgulho, o Filho Pródigo arrasta-se de volta à casa paterna. Humilhado, vencido, redimido: sua ínfima herança, ele a transformara num mundo inteiro, e esse é seu pedido de desculpas, seu presente de reconciliação: chegando à soleira da porta, o Diabo cai de joelhos, em prantos, implorando perdão, e é aceito ternamente de volta ao seio da Presença Divina.

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