domingo, 7 de fevereiro de 2010

[conto]o monstro da semana:fadinhas

O MONSTRO DA SEMANA:
FADINHAS

Depois de oitenta e tantos anos de vida mal-humorada, tudo o que restava a Rudy McGlut era continuar resmungando até o amargo final. Resmungar, e espirrar pelos corredores do castelo afora: cada estouro o deixava cambaleante e, enquanto limpava a goteira num lenço verde que nascera branco, décadas antes, via atraves dos olhos lacrimejantes a nuvem de pó brilhante que se afastava demarcando no ar, com precisão, as onda de choque do espirro - e que então se congelava no meio do processo de expansão, suspensa, imóvel pelos segundos que o velho levava para se recuperar, chovendo afinal de volta sobre o infeliz com um coro quase inaudível, mas mesmo assim vibrante, entusiasmado de crianças numa montanha-russa.
As “fadinhas” vinham com o velho castelo num só pacote e Rudy estava velho e cansado e dolorido demais para procurar alguma outra toca, longe daquelas pestinhas incansáveis. Como todo bom produto nanobótico, as coisinhas viviam para serví-lo; o problema é que pareciam adorar tudo aquilo, e o velho Rudy odiava demonstrações de alegria a seu redor, mesmo que viessem de poeira inteligente.
Cercavam-no de mimos e gentilezas: faziam surgir a sua frente a sopa quente sempre que se sentava a mesa à noitinha e de madrugada o café da manhã estaria esperando-o ali mesmo e os restos desapareceriam em pleno ar assim que Rudy se levantasse gemendo e saisse da sala praguejando e cuspindo de lado (e uma escarradeira se materializaria fraçõs de segundos antes que a descarga atingisse o chão de pedra).
A lareira acesa nas noites frias, o chá sempre à mão, e o banho também, todo sábado à tarde. As roupas sujas jogadas pelo cantos apareciam limpas e cheirosas no armário, toda vez que McGlut o abria em busca de seu melhor amigo, o uísque (e o conteúdo da garrafa nunca diminuia). O velho odiava aquela vida, maldizendo as bruxinhas que, jurava por todos os seus calos, podia ouvir rindo e fofocando e até mesmo cantando!todo o tempo, a sua volta.
Quando o mercado nanotecnológico atingiu massa crítica, a economia mundial foi para o espaço – literalmente: a população migrou aos bilhões para o resto do sistema solar e além, com todo esse poder e tão pouca matéria prima em que gastá-lo, aqui em baixo. McGlut seria capaz de jurar por suas hemorróidas que uma constelação nova surgira nos céus uma noite dessas, um coração estilizado com as palavras “joãozinho & mariazinha” inscritas bem no meio.
As aplicações inciais e especializadas da nanotecnologia milagrosa tinham seu charme – que durava apenas cinco minutos, se muito. A linha lepre©haun, por exemplo, que vivia de trevos de quatro folhas e partículas de água suspensas no ar e defecava potes de moedas de ouro: todo aquele metal dourado fazia os olhos do velho McGlut brilharem, e o brilho sumia com a lembrança quase imediata de que não fazia nada mais a comprar com aquela merda toda.
Agora que tudo era possível, qual era a graça em fazer qualquer coisa?, ruminava o velho McGlut. Os nano-produtos multi-uso, pau-pra-toda-obra foram a grande mania antes da revoada cósmica, o último suspiro capitalista , já um prenúncio do arrebatamento tecno-místico. Os antigos donos do castelo haviam adquirido e usado na propriedade uma boa dose de Pó-de-Pirlimpimpim em lata, “neblinas utilitárias”personalizáveis, nuvens de zilhões de nanobôs capazes de criar qualquer porcaria do próprio ar. Programadas para cuidarem de todas as tarefas domésticas e da subsistência dos moradores do castelo, as fadinhas foram expelidas no ambiente viciado do velho forte, subsistindo da abundante poeira local e multipiclando-se como coelhos, e parecendo adorar cada instante de suas vidinhas ruidosas e faiscantes.
A princípio, Rudy odiava todo mundo sem distinção, é claro. Afinal, não assinara qualquer contrato de gentileza e amor ao próximo ao nascer, assinara? , ora essa! Mesmo com o mundo vazio daquele jeito, decidira se precaver , enfiando-se naquele castelo abandonado no alto duma montanha. O único problema, é claro, é que o velho Rudy odiava especialmente crianças barulhentas, em bandos. E mulheres tagarelas – e as “fadinhas” eram como uma enxame de mulheres com mentalidade de crianças que não paravam quietas ou caladas um instante sequer.
Ainda assim, e mesmo que não tivessem nada de útil em suas cabecinhas infinitesimais, as fadinhas tinham seu coração gregário no lugar certo. Percebendo-se incapazes de agradar ao único mestre à mão, decidiram ir direto à fonte em busca de instruções: certa noite, enquanto McGlut dormia pelas poucas e turbulentas horas habituais, entraram em massa por um de seus ouvidos , saindo pelo outro com novas informações e novas resoluções fresquinhas.
Talvez não tivesse acordado com os tremores de terra por confundí-lo com seus habituais tremores intestinais. De qualquer forma, ao se levantar de manhãzinha para regar o jardim, respondeu maquinalmente, ensonado às dezenas de vozes que o cumprimentavam enquanto arrastava os chinelos até a porta da cozinha. Parou na soleira, afinal, um tanto zonzo, tentando entender porque os ossos lhe doíam , já que estava claramente sonhando: a sua frente, uma multidão de garotas com asas de libélula, cabeleiras flutuantes, orelhas pontudas : todas elas, peladas com carneiros tosquiados  . Corriam para todo lado como se aquilo fosse um restaurante da moda, mas pararam ao notarem a presença de Rudy, e o saudaram com vivas e sorrisos imensos e braços estendidos para abraços apertados.
O velhote saiu correndo aos berros, esbarrando nas criaturinhas que pareciam estar por todos os cantos do castelo e no alto, também, voando pelas abóbodas cavernosas, sorrindo, saudando-o e tentando beijá-lo. Alcançou uma janela, lutando para recuperar o fôlego, aspirar algum ar; já estava trepando no beiral, pronto para continuar sua fuga, quando notou que a montanha havia praticamente desaparecido, uma gigantesca mas estreita, lisa, coluna de pedra em seu lugar, servindo  apenas para sustentar o castelo. E por toda a volta, a paisagem parecia ter se aplainado, erodida do dia para noite:até onde a vista alcançava , revoadas sem fim de alegres fadas tamanho família, que cessaram seu alvoroço infernal apenas para sacudir as mãos e gritar : “Oiiii Rudeeeee!”
Acordou com o som de uma multidão murmurando a seu redor, abriu os olhos para um sem fim de rostinhos idênticos com suas expressões preocupadas – muitas das meninas voando zelosas além e acima do círculo de rostos , tentando enxergar o amo. Afastaram-se assustadas quando Rudy apertou com sua força de mão-de-vaca os braços da poltrona. Os minutos tiquetaquearam tensos, o velhote olhando de um lado a outro aquela parede de mulheres nuas confusas, mas então uma delas desceu do teto com um cachimbo da paz literal em suas mãozinhas, já aceso, cheirando ao tabaco predilto de Rudy e oferecido com sorrisinho hesitante. Outra seguiu o exemplo, trazendo bolo de carne; mais uma, os chinelos de estimação e uma outra, enfim, uma caneca transbordando espuma.
E o velho McGlut suspirou, finalmente vencido. Bem , um sujeito até que poderia se acostumar com uma vidinha daquelas, não é mesmo? Se bem que a cerveja tinha gosto de mijo de carneiro.

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