quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

[conto]lugares comuns:castelos nas nuvens

LUGARES COMUNS:
CASTELOS NAS NUVENS

Toda noite, Roger fazia questão de levar o lixo para fora: arrastava os sacos até a comporta  mais próxima, enfiava as tralhas não-recicláveis no compartimento de descompressão, fechava, esperava ansioso o sinal verde do alinhamento : apertava com força o botão de disparo, quase soltando vivas quando a carga era lançada em direção à atmosfera. Às vezes, mas aquilo era raro, tinha um vislumbre recompensador do lixo queimando na reentrada, antes da Terra sumir de vista novamente. Como uma criança que avistasse uma estrela cadente, Roger desejava, naqueles momesntos, que o mesmo acontecesse com a sua vidinha de merda.

Voltava assim, sempre melancólico, ao apartamento, que era hora de levar Cosmo para o passeio diário. A idéia tentadora de suicídio sumia ao passar pela sala de holovisão:  Joan5, quinto clone de sua esposa, estava estirada no sofá emo-plástico que, como uma bolha assassina de estimação, se agitava e se revolvia e se moldava a seu corpo, massageando-o – sempre em módulo relaxante , nunca estimulante. Joan v.5, sempre cercada por seus programas de simu-realidade prediletos. Joan, que já cometera suicídio quatro vezes antes, sob cobertura do seguro de saúde de Roger, sempre ressuscitada pra começar novo ciclo de alienação, sempre engordando como uma baleia encalhada , no processo. O primeiro indício de que as coisas estavam piorando de novo era a obstinação da esposa em ignorar inteiramente a presença de Roger, como fazia agora.

Passado esse ponto, a melancolia de Roger tornava-se fúria branda: suicídio não era uma solução, apenas um motivo para a taxa do seguro subir ainda mais. Roger passa pela porta da cozinha, finge que não vê Daisy, a energética, incansável, cromada, reluzente Daisy, a criada robô... Ela não parecia um tanto distante, talvez distraída, naquele dia?... - enfim, Roger se apressa apartamento adentro, antes que sua excitação o denuncie. O melhor era voltar à raiva branda, voltar a pensar em Joan: que abandonara uma carreira notável como escultora para acompanhar Roger até a estratosfera e além, quando o marido conseguira uma vaga num dos novos condomínios orbitais. Joan jamais se curara da nostalgia da terra firme, da lama, da argila. Roger ainda fazia suas viagens regulares ao escritório na superfície, através do elevador expresso,mas a esposa não encontrava mais energia sequer para se arrastar para fora de seu sofá.

Aquele lar claustrofóbico entre as estrelas: a raiva surda de Roger aumentava quando,depois de se trocar para o passeio, passava pelos quartos das “crianças”. Da porta fechada de Julie vinha uma música decadente que chamavam de “iê-iê-iê”, parte de algum desses complexos meméticos recorrentes na recicluttura pop . E Ray, o caçula: estava trancado à dias, papeando na seti@net com seus amiguinhos esquisitos do outro lado da galáxia. O fedelho já era praticamente um alienígena para Roger : da última vez em que se cruzaram pelo apertamento, usava um xeno-implante de antenas retráteis com metro e meio de comprimento máximo, quase matando o pai de susto ao cumprimentá-lo, chicoteando Roger com os novos apêndices.

Roger já se resignara a ver como seu único amigo no universo o bom e velho Cosmo, que puxava pela coleira nas passarelas rolantes . Nunca se encontrara com qualquer um de seus colegas de trabalho, todos os contatos sendo virtuais, e ainda bem que o eram: jamais quisera conhecer em pessoa seu chefe, o Sr.Stratos, que o perseguia e insultava continuamente até em sonhos (tinha o direito contratual de fazê-lo). Mas, o bom, velho, confiável Cosmo....! O *velho* Cosmo, acima de tudo. Recebera aprimoramentos neurológicos in utero, para que servisse de babá para as crianças, mas suas maneiras e vocabulário corteses de mordono inglês já haviam desaparecido há anos, desgastados , agora que o bom, velho Cosmo alcançara a terceira idade, a “senilidade” precoce em anos-de-cachorro. Havia talvez um certo alívio nesse triste, inclemente fato: o de que Cosmo estava se desgastando mais rápido que Roger.

De fato, tudo se desgastava mais rápido no espaço, dos ossos aos relaciomentos familiares. Como se o girar contínuo do condomínio orbital, que garantia a gravidade nível-terra nos anéis habitacionais, tornasse tudo mais rápido,breve, desnorteante que no planeta lá embaixo. Mas no centro daquele pião monstro geosincrônico, tudo era mais leve; chegando aos bosques hidropônicos no eixo oco do condomínio, Roger procurou um vinhedo discreto em cuja base o pobre Cosmo pudesse fazer suas necessidades, se é que já não se esquecera como.

O ambiente sempre verdejante seria confortador se Roger não estivesse tão ansioso: passeava os olhos em volta sem enxergar realmente as crianças e os casais jovens e apaixonados saltando entre as as hastes que sustentavam e nutriam a mata de vinhedos; pareciam todos ridículos, macacos sem pelo em roupas coloridas, semi-flutuantes no ambiente de baixa gravidade. Roger se irritava com tudo: talvez fosse o desconforto dos calçados metálicos que o prendiam e a Cosmo no “chão”; talvez fosse a visão do cachorro lutando para mijar contra o efeito da gravidade – talvez fosse o efeito conjugado da gravidade baixa e do excesso de oxigênio...

Mas eis que chega seu sossego, lá vem ela, deslizando calma, seguramente entre as trepadeiras, sua amada perfeita, Daisy, que escapulira do apartamento para mais um daqueles encontros clandestinos, sempre discreta (não que a patroa estivesse prestando atenção em seu trabalho). Daisy, a única criatura constante naquela vida rodopiante , a mais fiel (Cosmo não contava, não tinha aqueles acessórios), imutável, paciente, companheira, previsível: perfeitamente customizada. Embevecido, Roger arrancaria um tufo das flores que pipocavam ao seu redor e as ofereceria a sua amante, não fosse o fato de que os jardins estavam cheios de abelhas programadas geneticamente para atacar qualquer vândalo.

Enfim, o encontro que o infeliz Roger aguardara o dia inteiro... ! Mas há algo errado: as luzes de emergência de Daisy piscam em pânico, o corpo reluzente tremendo, zumbindo, rangendo como que em prantos; seu monitor peitoral acende-se com urgência, desesperado, até,as mensagens brotando linha após linha sem cerimônia:

“Roger // Roger querido//Eu estou grávida.”

Um comentário:

Anônimo disse...

Caralho!
O cara que fez os Jatsons devia ver isso... Adorei esse finalzinho! Muito massa!