segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

[conto]desnascido

DESNASCIDO

Escuro.
... cinza ...
?
Calor... luz...
?=! : “dia”!
Grunhido.
?
Dia.
E ... escuro & claro. Um. Dois. Mais. E...duro.
?
...?= “coisa”!. Muda: mais coisa. Muda: a mesmas coisa. Muda: a outras coisa.
Muda: gira. Coisa. Coisa, perto. Coisa, longe. A outra coisa, longe, perto.
?
...?=“movimento”!
Grunhido!
...?...

... dia; não-dia ?
?= “noite”! Noite, dia. Dia,noite.

Dias, noites. Muitos.
“Sala”. “Pa-re-des”. “Mesa”, “sofá”, “ca-dei-ra”. Um monte de outras coisas.
Uma parede que não é parede. “Ja-ne-la”. “Fora”. Janela é dura como parede, mas não está lá. E, mesmo não estando lá, janela não deixa o lá fora chegar mais perto, vir para dentro.
Grunhido...
?
“Mãos”: perto. “Dedos”. Pendurado num dos dedos: coisa pequena, coisa pesada :?
Como uma mão , só que menor, sempre fechada , sempre apontando um dedo; mais dura que uma mão. Uma mão pequena e pesada. Cinza.
Grunhido!
...?...
“mão” não é “grunhido”! “Grunhido” é “?”. Mas as mãos , e a coisa dependurada numa delas, respondem/vêem/chegam mais perto quando surge o “grunhido”-que-é=?
Mais perto ainda: as mãos tocam uma coisa que não está lá. Janela? ...mais macia que as outras coisas... Sofá? A coisa que as mãos tocam quando chegam ainda mais perto  não está na sala, não está lá fora, está onde?
Escuro!
Grunhido!
As mãos se afastam: luz.
Grunhido...
As mãos fazem o dia e a noite?
Escuro. Grunhido...
!
Grunhido=!
!=aqui dentro!
Grunhido!

Dias, noites.

Grunhido explora a sala, conhece-a tão bem quanto as mãos e a coisa dependurada em uma das mãos e, como para essa coisa, para muitas outras Grunhido não consegue encontrar um nome. E há as coisa para as quais Grunhido tem um nome mas com as quais não sabe o que fazer. Como “porta”. Que é como parede, mas não é. Como janela?
Barulhos lá fora. Grunhido grunhe com mais força, mas não há resposta. Grunhido gosta da janela e também não gosta. Fica a maior parte do dia e da noite olhando pra fora: aquilo tudo, aquelas outras coisas que a janela mostra mas não deixa tocar.
E há as coisas *na* janela. Uma coisa suja, “ver-me-lha”, quase transparente como a janela, mas sem ser. Coisas pequeninas presas na coisa suja quase transparente,e caídas no “chão”, também. Cinzas, como a coisa pendurada na mão – cinza, como eram as coisas no início, depois da escuridão e antes da luz.
E em certas noites, quando a sala está mais clara que o lá-fora: se faz muita força, Grunhido consegue enxergar uma “sombra” na janela, uma sombra que não está lá o tempo todo. Parece um... “homem”?que responde a todo gesto de Grunhido, de forma idêntica, e que tem até a mesma coisa esquistia pendurada numa das mãos. Homenzinho irritante.

Noites, dias.

Grunhido acaba descobrindo que o homenzinho irritante mora numa caixa em cima da mesa, quando não está preso na janela. A caixa parece com a janela, um pouco, mas é menor, e torna o homenzinho pequeno e mais irritante ainda.
Grunhido bate com a coisa-dependurada-no-dedo (“grunhido...”) na caixa, sem querer, e a caixa começa a falar.
“...oh deus, me perdoe. Me perdoe pelo que nós fizemos, me perdoe pelo que vou fazer.
“Nós não sabíamos o que iria acontecer... Não. Nós sabíamos, mas preferimos não saber. Ninguém queria saber...”
Homenzinho irritante. Barulhento. A única coisa que incomodava Grunhido no mundo. Não tinha a menor idéia do que os barulhos que o homenzinho irritante queriam dizer, nem tinha interesse em descobrir.
Mas estava agitado, quase tão agitado quanto o homenzinho na caixa barulhenta. Queria ir pra longe dos dois – queria ir lá pra fora.
“Nós tínhamos o segredo da imortalidade nas mãos, puta que pariu! Quem iria ficar sentado em cima da maior descoberta da história, esperando o resultado dos testes de laboratório? Levaria anos para poder colocar o produto no mercado!
“Quem poderia prever... Quem pensaria duas vezes antes de experimentar o elixir da vida eterna mesmo sabendo que ele poderia ter efeitos colaterais?”
A janela não adiantava. Mas a porta: havia um pedaço dela que se mexia um pouco, se Grunhido usasse direito suas mãos. “Ma-ça-ne-ta”. Talvez se Grunhido mexesse na maçaneta mais um pouco, ainda mais, ela se mexesse mais ainda, e depois a porta se mexesse com ela?...
“A fórmula era perfeita – perfeita demais. Depois que o retro-vírus reescreve o código genético do paciente, o organismo é capaz de sofrer qualquer tipo de dano e mesmo assim regenerar tecidos e órgãos inteiros. Até mesmo tecido nervoso. Até mesmo... oh deus, oh meu deus do céu...”
Mexe, mexe, mexe.
“...até mesmo o cérebro. Mas...mas... A complexidade do sistema nervoso central... Nós não sabíamos... não, nós sabíamos mas não queríamos aceitar... O tecido regenerado não é igual ao que substitui... E se você sofre dano demais, o órgão regenerado é completamente diferente do original...”
Mexe!
“O cérebro.. o cérebro perde quase todas as informações que acumulou a vida inteira... só o básico fica... oh meu deus. Nós lançamos o produto no mercado negro, não esperamos os resultados dos testes.
“E todas as pessoas que usaram o produto e que morreram, voltaram da morte... mas não eram mais as mesmas. Todas elas. Todas.”
Mexe?...
“Oh deus eu não quero viver pra sempre como um zumbi-BLAM!”
Grunhido se espanta com aquele barulho mais alto do que qualquer outro que já conhecera. Mais alto até que o homenzinho irritante e barulhento. Fica tão surpreso que custa a perceber que a sala está maior do que antes. Que o lá dentro está misturado com o lá fora, agora: que a porta está aberta.
As surpresas não terminam ali. Assim que sai, Grunhido percebe que o lá fora é  bem maior que o lá dentro. Há paredes e janelas, mas também muitas portas, e muitas delas abertas, levando-o sempre mais longe.
Melhor! Há mais Grunhidos pelo caminho. Não se parecem com o homenzinho irritante, e não têm a coisa-presa-no-dedo, nenhum deles, mas são todos como Grunhido – são todos Grunhido. Aqui dentro, lá fora. Todos se reconhecem. Todos se entendem. Todos preferem estar lá fora do que lá dentro. E o lá fora torna-se ainda maior a cada passo que se dá.
Grunhido, grunhido!

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