quarta-feira, 22 de junho de 2011

[conto-curto] enjôo matinal

ENJÔO MATINAL

A imagem embaçada no espelho no banheiro; Pati curvando-se sobre a pia, dobrada pela dor.
Anorexia estava deixando de ser uma doença da moda e, de qualquer forma, seus anos de modelagem já haviam ficado para trás. A neura de Pati era outra: era, de fato, agarrar-se tão ferrenha,dolorosamente ao que se fora de vez.
Ainda assim. Incapaz de reter qualquer coisa naquele corpo frágil... insubstancial, até.
Seco.
(Estéril.)
(...sem futuro...)
Incapaz de engolir, digerir o alimento.
, agarrando-se trêmula nas bordas: uma nova golfada, um jato
                                                         negro escuro denso
Pati nauseada afastando-se da borda tropeçando na borda da escuridão quase
                                                         desfalecendo
: aquela matéria viscosa mais sólida do que ela mesma era, agora.
Cambaleante: incapaz de manter o foco
                                                            incapaz de sustentar a velha auto-imagem
, aquela imagem sacra de si mesma atemporal imorredoura

(seu reflexo embaçado no espelho: não por vapor condensado de qualquer chuveirada matinal
nem por estar a superfície do espelho imunda
mas porque seu rosto não era mais capaz de refletir o brilho do mundo como outra
sem força sem substância própria
sem vida)

: a imagem de que tentava escapar, escorregando pelo banheiro imundo no velho hotel abandonado, em ruínas - o espelho que já não retinha mais seu rosto: o corpo feito da mesma matéria dos sonhos, instável, noturna, arredia à indiscrição dos flashes de câmeras importunas, à clareza impiedosa da luz do dia:
Aquele esqueleto enegrecido (imundo)atado como que por teias de aranha cinzas...seus cabelos?
De que cor eram seus cabelos, quando ainda vivia?
Vomitando o sangue roubado, acumulado, o refluxo de anos e anos:
o liquido aglutinado, pequenas poças, nunca coaguladas:
pequenos espelhos negros. E as imagens ainda assim nítida que nele se refletiam...nunca, o rosto perdido de Pati.
Mas o de velhos conhecidos, uns até mesmo, estranhos, mas tornados íntimos,no final. Velhas lembranças. Rostos diferentes, vidas diferentes. mas a mesma expressão acusadora,magoada, o mesmo ódio nos olhos.
Uma golfada atrás da outra, uma lembrança atrás da outra, uma vítima, uma outra, mais uma. Seu alimento, suas presas, seus amores.Seus bebês.

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