segunda-feira, 20 de junho de 2011

[conto] volkenstein



VOLKENSTEIN


Ao leitor destas garatujas , peço desculpas pela narrativa desordenada que apresentam, mas ouço cada vez mais nítidos o tropel de dezenas de pés e o alarido das vozes furiosas que se aproximam : urge que eu me apresse e que conclua esse registro. Que minha história, por mais desconexa que se apresente, fale por si mesma.

O selo de família cuja marca imprime nesta folha de papel terá que servir como assinatura e como carta de recomendação; o paciente leitor precisa saber apenas que dediquei toda a minha vida a percorrer as veredas torturosas e obscuras da Ciência, em busca dos mais íntimos segredos da Natureza.

O leitor cultivado saberá que a Estrada do Saber atravessa o Pântano da Desconfiança e o Deserto da Ignorância: em mais de um momento minhas pesquisas arcanas angariaram o opóbrio da malta.

Porém, esses são tempos de Iluminação e eu jamais quis me esconder nas sombras, distante do nobre mais inocente povo de nosso reino. Por isso mesmo, ao alcançar o que julgo ser o ápice de minha obra, quis de imediato compartilhar meu júbilo e os frutos de meu trabalho com os humildes e honestos campônios que habitam as cercanias do castelo de minha família.

Após uma noite de árduos e cuidadosos preparos, precipitei-me, talvez um tanto exaltado, admito, para a igreja local , onde sabia estarem reunidos em massa os habitantes do vilarejo.

Sim, foi um tanto rude de minha parte interromper o sagrado rito da liturgia...se não me falha a memória, havia um velório em andamento, mas esses detalhes nunca se fixam com força em minha mente nesses momentos de excitação... e é possível que eu tenha me excedido em meu pendor retórico ao tentar imprimir naquele populacho todo o significado portentososo de meus achados...

O fato é que custou-me alguns momentos percebem que o bom mas um tanto austero povo da vila já não mais me ouvia, mas apenas se acercava lenta e maciçamente do púlpito em que me encarapitrava com uma expressão comum que ouso chamar, sem qualquer pendor retórico, de homicida.

A hostilidade da pobre malta pode ter sido estimulada por um ou outro infeliz evento de nossa longa convivência... o incidente com as ovelhas e o pernil mal-passado e vingativo me ocorre como uma possibilidade distante... mas o leitor há de convir que reações violentas pertencem aos tempos medievais e a nossa Era Iluminada, em que a Ciência caminha de braços dados com a Industria na trilha infindável da...

Mas, enfim. Escapuli-me como pude, saltando através dos vitrais - de péssimo gosto, aliás - do pequeno templo, apenas para ver-me perseguido pela multidão já nada tímida através do lamaçal das ruelas.Incapaz de alcançar o santuário de meu castelo, tranquei-me no paiol onde o povo guarda sua colheita de trigo,já nas cercanias do vilarejo. Eu certamente teria preferido o refúgio do velho e sólido moinho, não fosse o fato de que dele mal restavam as fundações , destruído pelos mesmos campônios quando de seu encontro justamente com um de meus primeiros experimentos,aquele pobre e incompreendido bruto...

O que não deixa de ser levemente irônico. Ainda mais ensandecidos com minha manobra, e mesmo com minhas repetidas tentativas de argumentação através das tábuas de meu reduto, um dos infelizes teve a idéia desgraçada de lançar, através da alta janela do paiol um dos archotes que a malta brandia com veemência (apesar de estarmos numa manhã clara de verão, note bem o leitor).

A estultice do incendiário oportunista certamente fizera-o esquecer de um fato curioso e fatal: que o pó dos grãos assim acumulados num recinto fechado é altamente inflamável, e explosivo, de fato, o que toda aquela tola massa pode averiguar de imediato, quando as paredes do paiol se arrebentaram, os estilhaços de madeira e as chamas vorazes envolvendo toda a população da vila, amontoada ao redor.

Aquele fora certamente um momento lastimoso na longa e honrada história de nosso cantão. Visão deplorável, a que então se descortinava entre os destroços carbonizados do paiol: aquele emaranhado de membros e órgãos humanos espalhados de forma indiferenciada num círculo, em torno do foco da explosão.

E toda a cena se tornara ainda mais vexante quando esses abatedouro humano reanimou-se por inteiro, espasmódica,cega,dolorosamente a princípio,mas logo com mais e mais força e agilidade, dir-se-à,até mesmo com propósito, os restos de toda a aldeia juntando-se ,remendando-se, fundindo-se no mero toque, aglutinando-se num só corpo.

Eu mesmo não escapei incólume a este holocausto,é claro. Por uma dessas artimanhas da Física, ao invés de ter sido destroçado pela explosão, fui propelido por sua força concussiva através dos céus azuis de nosso reino até vir parar, aqui, empalado no alto galho dessa frondosa árvore.Um galho que não é dos mais firmes, ouso dizer, e que, através de estalidos suspeitos , ameaça se romper com o meu peso a qualquer momento. Assim,permita-me concluir meu triste relato,ó,paciente e misericordioso leitor.

Perceba: meu derradeiro achado científico fora a redução de todo o meu já consagrado processo de revivificação, de um laboroso conjunto de procedimentos mecânicos e elétricos, a um único agente químico. Que decidi testar de imediato e cuja ação benfazeja decidi compartilhar, em meu excitamento algo febril,concedo,com toda aquela boa gente que tolerou meus inocentes,apesar de excêntricos,caprichos por todos esses anos de serviço à ciência.

E fí-lo prontamente,descendendo de meu castelo em plena madrugada para despejar todo um galão do verdadeiramente milagroso agente químico dentro do poço de que bebe todo o vilarejo.

É,pois, com imensa tristeza que encaro o repúdio dessas bravas mas tolas criaturas a meu gesto de boa-vontade. É certamente com desmesurado desgoto que observo e ouço, destas alturas incômodas(e o registro aqui com o coto do dedo indicador carbonizado, tornado carvão), seu ir e vir, serpenteante, entre as grossas árvores desta veneranda floresta, unidos agora num só longo, assimétrico, cordão de carne,pontuado de membros espinhosos com os quais menos caminha do que se empurra e rola pelo terreno irregular.

E ainda brandindo pás e forcados com as mãos que lhes restam, e ainda vociferando ameaças e maldições com as bocas que brotam pro toda a extensão nodosa dessa criatura compósita: pois ainda me perseguem, incansáveis e sem misercórida, esses ingratos!

Mas,oh! Eis a sina do homem de visão, eis a paga de todo aquele que, mesmo depois de contemplar as glórias do Infinito, escolhe ainda assim retornar estoi*CRAC*
                                                                                        

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